Famílias no atoleiro

Publicado em Economia

O percentual de famílias endividadas caiu, mas o número de lares inadimplentes e sem condições de honrar seus compromissos bateu recorde, conforme pesquisa realizada pela Confederação Nacional do Comércio (CNC), que será divulgada hoje. A combinação perversa entre desemprego alto, inflação persistente e taxas de juros absurdas foi determinante para agravar a vida financeira dos trabalhadores que não conseguiram adequar os débitos à forte queda na renda.

 

Pelos cálculos da economista Marianne Hanson, da CNC, 2016 fechou com 58,7% das famílias endividadas ante os 61,1% do ano anterior. Esse recuo deveria ser motivo de comemoração, não fosse a impressionante deterioração nas condições dos lares que se mantiveram pendurados em bancos, lojas, cartões de crédito e em financiamentos da casa própria e de carros. O total de famílias com contas em atraso passou, no mesmo período, de 20,9% para 23,6%. Já o índice daquelas sem condições de pagar os débitos saltou de 7,7% para 8,9%. Em ambos os casos, são os piores resultados da série histórica.

 

O número de famílias com dívidas atrasadas ou que já se declararam sem condições de honrar as faturas aumentou em todas as faixas de renda — ou seja, foi um processo disseminado, que levará tempo para ser revertido. Não por acaso, os especialistas não veem recuperação para o consumo em 2017. Na melhor das hipóteses, o que se verá é uma estabilização das vendas num nível insuficiente para dar uma guinada da economia. Os estragos da recessão serão sentidos por um bom tempo.

 

“É verdade que a queda da inflação e dos juros dá um alívio, mas é preciso que o emprego volte para que as famílias possam regularizar as finanças e retomar o consumo”, diz Marianne. Ela destaca que 9,2 milhões de famílias estão endividadas e com as contas em dia. Outras 3,6 milhões caíram na inadimplência (alta de 18,4%) e 1,4 milhão já assumiram que não têm como pagar mais nada (elevação de 25,2%). “Observamos, ao longo do ano passado, muita dificuldade das pessoas em se adaptarem ao novo nível de renda, uma vez que os salários não conseguiram acompanhar a inflação”, frisa.

 

Muito e mal

 

Um dado preocupante, no entender da economista da CNC, é que as famílias que continuaram se endividando optaram por recorrer às operações mais caras do mercado: o cartão de crédito e o cheque especial. Em 2015, do total de famílias com dívidas, 76,1% deviam no cartão. No fim do ano passado, eram 77,1%. Entre as que estão atoladas no cheque especial, o índice pulou de 6,2% para 7,2%. No crédito pessoal, a participação nas dívidas aumentou de 9% para 10,3%.

 

“Das dívidas mais baratas do mercado, apenas o crédito consignado cresceu, de 4,6% para 5,4% do total”, ressalta Marianne. Isso comprova que os brasileiros se endividaram muito e mal. Tanto que, mesmo com a proporção de famílias devedoras caindo, o comprometimento médio da renda com prestações se manteve estável, em 30,6%. Quer dizer: de cada R$ 100 que entram no caixa das famílias, R$ 30,60 vão direto para a quitação de dívidas. É muito, levando-se em conta que o volume de compromissos é grande: aluguel, prestação de imóveis, impostos, escolas, planos de saúde, medicamentos, entre outros.

 

Para reverter esse quadro, acredita a economista, será preciso uma ampla renegociação nos débitos. “Mais que isso, o planejamento financeiro terá que levar em consideração o que vem pela frente, porque comprometerá a renda futura”, afirma. Isso quer dizer que não dá para renegociar dívida e sair consumindo desesperadamente, pois, de novo, faltará dinheiro para manter todos os compromissos em dia. Do ponto de vista macroeconômico, destaca Marianne, menos consumo significa menos crescimento e demora maior para o país sair da pior recessão da história.

 

Saque do FGTS

 

O governo acredita que, a partir de março, quando começará a liberação para saques de contas inativas do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), as famílias com renda inferior a 10 salários mínimos, que estão em situação mais difícil, conseguirão ver um alívio. “Não é muito o que será sacado, mas já ajudará a pagar uma conta ou outra que está atrasada”, ressalta um técnico da equipe econômica. No total, o governo prevê liberar R$ 30 bilhões com a medida.

 

“Nosso objetivo é abrir alguma frente no consumo. A demanda das famílias é importantíssima para movimentar o Produto Interno Bruto (PIB)”, assinala o mesmo técnico. Ele garante que o governo está imbuído em estimular a retomada do crescimento. “É vital até para dar sustentação ao presidente Michel Temer. As pessoas precisam ter de volta a sensação de bem-estar. Não adianta ficarmos propagando a queda dos juros e da inflação se isso não for captado na vida real. Entre o discurso e a prática, há uma longa distância”, conclui.

 

Brasília, 06h10min