Para especialistas, crimes cometidos por PMs contra civis devem ir à Justiça Comum.
A decisão do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, de declarar inconstitucional resolução do Tribunal de Justiça Militar do Estado de São Paulo (TJMSP), que autorizava policiais militares a apreender instrumentos e todos os objetos que tivessem relação com crimes militares, vai ao encontro da legislação e pacifica um eventual conflito de competências. Essa é a avaliação de especialistas no tema.
O órgão do TJ-SP acatou tese da Procuradoria-Geral de Justiça, segundo a qual as normas procedimentais devem derivar de leis. A medida, segundo o Ministério Público de São Paulo, contrariava flagrantemente a Constituição Federal.
“A Constituição de 88, ao tratar das competências de cada uma das Justiças, estabeleceu que compete à Justiça Militar Federal julgar ‘crimes militares’ definidos em lei. Assim, com relação aos atos de militares do Exército, Marinha ou Aeronáutica, cabe à lei dizer o que seja ou não crime militar. E a Lei 13491/17 alargou a definição do que seja ‘crime militar’ passando a abranger inclusive os crimes dolosos cometidos por militares das forças armadas contra a vida de civis”, explica Paula Salgado Brasil, constitucionalista e professora da Escola de Direito do Brasil (EDB).
Segundo Paula, quando se trata dos militares dos Estados, há expressa previsão constitucional (no artigo 125, parágrafo 4º da Constituição) de que crimes dolosos praticados por militares contra a vida de civis serão julgados na Justiça Comum Estadual porque seus autores são levados a julgamento pelo Tribunal do Júri, presidido por um juiz de Direito.
“Assim, muito embora conste no Código de Processo Militar (que data de 1969) que os autos de um Inquérito Policial Militar (que esteja apurando um crime cometido por policial militar estadual) serão encaminhados pela Justiça Militar para a Justiça Comum Estadual, esse dispositivo não pode ser interpretado isoladamente”, esclarece.
A especialista defende ainda que se tenha um olhar sistemático sobre o conjunto de leis, já que são muitas e se sobrepõem com o passar dos anos. “O mais importante é que devem ser leis federais – não resoluções de um Tribunal. Se um Tribunal inovar o mundo jurídico, criando regras sobre os procedimentos relativos a como serão feitas a apuração da autoria, preservação da cena do crime etc., este tribunal estará exorbitando suas funções. Neste sentido, a Resolução 54/2017 realmente extrapola seu poder, violando a separação de Poderes”, afirma.
“Não se está discutindo a competência para julgar os crimes dolosos contra a vida de civis, cometidos por policiais militares dos Estados da federação, pois a Constituição é clara ao remetê-los para o Tribunal de Júri — portanto, Justiça comum. O que foi questionado foi a Resolução 54/2017 do TJMSP criar uma regra de procedimento de apuração desse crime”, conclui.
Vera Chemim, advogada constitucionalista e consultora do NWADV, concorda com a professora Paula Salgado. “No que se refere aos crimes dolosos contra a vida, mesmo que praticados por militares serão de competência da Justiça Comum, conforme estabelece o Decreto nº 1.001/1969 modificado pela Lei nº 13.491/2017, em seu artigo 9º, quando define os crimes militares cometidos em tempo de paz”.
“Os parágrafos 1º e 2º dispõem, respectivamente, que os crimes dolosos contra a vida cometidos por militares contra civil serão de competência do Tribunal do Júri, assim como os crimes dolosos contra a vida cometidos por militares das Forças Armadas contra civil serão de competência da Justiça Militar da União, a depender do contexto previsto nos seus incisos I, II e III”, lembra Chemim.
A constitucionalista esclarece que tais previsões encontram amparo constitucional, mais precisamente no artigo 125, parágrafos 4º e 5º. Esses trechos da Constituição mostram que compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, mas apenas crimes militares definidos em lei e ações judiciais contra atos disciplinares militares.
No entender do advogado criminalista e constitucionalista Adib Abdouni, a Resolução n. 54/2017 do TJMSP “abriu um flanco perigoso ao conceder verdadeira autorização a policiais militares — envolvidos diretamente ou não em crimes dolosos contra a vida de cidadãos comuns — para burlar o dever de preservação do local do crime, em indelével prejuízo de sua elucidação e em evidente favorecimento da impunidade”.
Por isso mesmo Abdouni considera positiva a decisão do Órgão Especial do TJ-SP, que declarou a inconstitucionalidade daquela Resolução. “Aquela norma afrontava expressamente o artigo 144, parágrafo 4º, da Constituição Federal, que reserva à polícia judiciária o dever de preservar a incolumidade do palco do crime, o que é reafirmado pelo artigo 6º do Código de Processo Penal”, afirma.