Presidente da Unafisco questiona atuação da Receita em fiscalização de privilegiados pelo sigilo, como parlamentares, juízes, ministros e diretores de estatais, e é submetido a processo de apuração de ética, acusado de deslealdade e de causar dano à imagem da instituição
Reclamação de um auditor fiscal da Receita Federal (RFB) pôs em xeque o excessivo controle da liberdade de profissionais do Fisco para investigar políticos e autoridades supostamente envolvidas em crimes tributários. O presidente da Associação Nacional dos Auditores (Unafisco), Kleber Cabral, após denunciar a restrição, foi interpelado judicialmente pelo secretário Jorge Rachid e submetido a um processo de apuração de ética, acusado de deslealdade e de causar dano à imagem da instituição. O fato repercutiu muito mal dentro e fora do órgão e recebeu apoio de diversas entidades sindicais. Cabral foi punido porque deixou claro que, no momento em que a sociedade luta contra a corrupção e o desvio de dinheiro público, a Receita Federal não trata com suficiente rigor um grupo de privilegiados.
De acordo com Cabral, o objetivo da revelação sobre os caminhos equivocados dos gestores da Receita foi abrir um debate e indicar formas de enfrentar o problema. Mesmo com as acusações de Rachid e da Comissão de Ética, consideradas por ele infundadas, Kleber Cabral afirma que não desistirá. “Não vamos recuar. Continuaremos com altivez e severidade fazendo o enfrentamento. A discussão que veio à tona pode ser interpretada como uma recomendação para aprofundarmos os estudos. Não há razão para a RFB fazer monitoramento indiscriminado do auditor, e não de quem comete irregularidades”.
Há anos, celebridades são tratadas com neutralidade e leniência, disse. Na lista dos privilegiados pelo sigilo estão deputados, senadores, ministros, secretários, presidentes e diretores de estatais, juízes e procuradores, cuja posição estratégica no Estado os torna, em tese, potencialmente mais propícios a crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Mesmo assim, por longos anos, os radares da Receita não detectaram enormes transferências de recursos, ocultações de patrimônio, utilização de empresas de fachada, que só vieram à tona com a Operação Lava Jato.
Incômodo
Mas quando Cabral botou o dedo na ferida, dois principais assuntos incomodaram Rachid: o acobertamento dos CPFs e CNPJs dos contribuintes que aderiram à Lei de Repatriação – o que abre brechas para a lavagem de dinheiro, uma vez que não há exigência de se provar a origem dos recursos no exterior – e a lista das Pessoas Politicamente Expostas (PPE). Até mesmo auditores que participam da força tarefa da Lava Jato têm dificuldade de conhecer os nomes envolvidos. Se a PPE é acessada, imediatamente o delegado ou superintendente da área ou o próprio secretário da RFB é alertado.
“Em investigação sigilosa contra, por exemplo, um deputado do interior, não há como o delegado da área não ficar sabendo. Procuradores da República já falaram sobre a necessidade de se abrir a caixa-preta da PPE”, lembrou. O acobertamento contraria, inclusive, normas internacionais, seguidas por órgãos como o Banco Central e Comissão de Valores Mobiliários (CVM). “A Receita alega respeito ao princípio da impessoalidade, que só vale para o auditor”, destacou Cabral.
Apoio de entidades sindicais
Entidades representativas de servidores demonstraram perplexidade e indignação com o cerceamento à livre manifestação do líder sindical Kleber Cabral, garantida pela Constituição. O Sindicato Nacional dos Auditores da Receita (Sindifisco Nacional) declarou que nenhum dirigente deve se sentir constrangido ou intimidado em decorrência da expressão de seus pensamentos. “De fato, soa estranho a manutenção de lista de pessoas protegidas, num momento em que, sabe-se, as investigações dos auditores têm subsidiado importantes operações policiais contra a corrupção, como Lava Jato, Zelotes, Calicute. Para o combate à corrupção e à lavagem de dinheiro, é fundamental que os auditores estejam protegidos de qualquer tipo de censura ou retaliação quando em cumprimento da sua atividade fiscalizatória”, desatacou o Sindifisco.
O presidente do Sindifisco-DF, Waltoedson Dourado, igualmente apoiou as denúncias de Cabral. “Ele apenas ressaltou a capacidade limitada de cumprir nossa atribuição. E que esses limites vão contra o interesse da sociedade. As declarações em nada ferem a RFB. Estamos fazendo um abaixo-assinado em favor do Cabral e contra a retaliação que ele recebeu”, contou Dourado. Ele revelou que não é a primeira vez que o secretário Rachid age dessa forma. O sindicato já entrou com vários processos contra ele pelo mesmo motivo.
Democracia
Rudinei Marques, presidente do Fórum Nacional Permanente da Carreiras de Estado (Fonacate), destacou que fatos como esses não podem acontecer em uma democracia. “O Fonacate se solidariza com o presidente da Unafisco e vai estudar medidas jurídicas para protegê-lo e garantir o direito de voz”, declarou Rudinei Marques. Por meio de nota, a RFB informou que o órgão “por força do sigilo fiscal trabalha em silêncio, diferentemente do MPF e PF que não têm essas amarras”. As autuações na Operação Lava Jato já totalizam mais de R$ 12 bilhões, destacou a nota. Desse total, R$ 7 bilhões em créditos tributários.
Mas, antes, a fiscalização já atuava nos casos que causaram prejuízo à Petrobras, “com autuações de R$ 4,72 bilhões no caso Schain, relativo a produção de plataformas”. A nota diz, ainda, que a Receita, também na Lava Jato, “já analisou 7.516 CNPJ e 6.072 CPF, e 3,5 milhões de páginas de documentos judiciais e extrajudiciais”. Investigou 58,7 mil pessoas até o momento, foram instaurados 1.686 procedimentos fiscais, dos quais 1.008 estão em andamento e 678 foram encerrados.
A Receita informou também que encaminhou 67 representações fiscais para fins penais ao Ministério Público Federal e já está preparando 140 para enviar em 2018. “Por fim, aproximadamente 800 procedimentos de fiscalização deverão ser
encerrados em 2017, com expectativa de autuações de mais de R$ 4 bilhões”, declarou o órgão, sem especificar os motivos que levam o secretário Jorge Rachid atuar contra o auditor Kleber Cabral.
O outro lado
Apesar do apoio às denúncias do presidente da Unafisco, Kleber Cabral, críticos ao comportamento dos auditores fiscais da Receita, “classe que chegou a defender autonomia administrativa e financeira do Poder Executivo”, relatam que é um perigo ampliar o poder da categoria, para evitar abrir espaços para abusos de autoridade. Para essas pessoas, que não quiseram se identificar, Cabral faz parte da ala conservadora da Receita. “Ele acha que o Rachid tem que endurecer com os demais servidores e dar todas as prerrogativas e poderes aos auditores, além do bônus de eficiência, que ele também acha que tem que ser só para auditor. Ele chama analista de auxiliar de auditor”, reclamam.
Segundo Waltoedson Dourado, do Sindifisco-DF, há controles internos que não permitem exageros. Em 2016, por exemplo, foram aplicadas 78 penalidades a servidores do Fisco. Destas, 66 foram expulsórias – entre elas 44 por corrupção. “A Corregedoria da Receita tem equipe treinada para comprovação de excessos ou ilícitos penais. É uma das mais eficientes do mundo”, disse Dourado. Além disso, externamente, há controle do Tribunal de Contas da União (TCU), da Controladoria-Geral da União (CGU) e do Ministério Público Federal (MPF), relatou Dourado. Para Kleber Cabral, a discussão não é sobre poder. “Todos os acessos ao sistema são controlados. E deve ser mesmo dessa forma. Agora o que se quer é uma fiscalização efetiva para qualquer um de nós, inclusive para as celebridades”, defendeu-se Cabral.