A reforma administrativa e o loteamento do Estado

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“Ninguém pode ser contra aperfeiçoar, melhorar o serviço público, em todos os Poderes e esferas de governo, fazendo assepsias em exageros e excessos. Mesmo com suas carências, o brasileiro sofreria muito mais na maior crise sanitária de todos os tempos, se não houvesse um serviço público de qualidade. Nos hospitais, na segurança pública, na diplomacia, no atendimento virtual, e, na maioria expressiva das atividades, que permaneceram, mesmo em teletrabalho ou sofrendo os riscos da atividade presencial, atendendo aos cidadãos”

Vilson Antonio Romero*

O governo federal enviou à Câmara dos Deputados no início de setembro a reforma administrativa há tanto anunciada e postergada por razões técnicas e políticas, agravadas pela pandemia que, desde março, assola o país.

Há diversos aspectos envolvidos nessa Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 32/2020, mas, basicamente, ao modificar 12 artigos da Constituição Federal (CF), com supressões ou revogações parciais ou integrais e acrescentar cerca de uma dezena de regras transitórias, o governo foca em duas questões primordiais: a eliminação do Regime Jurídico Único (RJU) e o fim do instituto da estabilidade.

Se aprovado como está o texto, o RJU (Lei 8.112/1990), determinado pelo artigo 39 da CF/88, em sucessão ao anterior Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União (Lei 1.711/1952) será desmembrado em cinco tipos de contratação nos entes públicos: a) vínculo de experiência, b) vínculo por prazo indeterminado (sem estabilidade), c) cargo típico de Estado (com estabilidade), d) vínculo por prazo determinado (temporário), e)cargo de liderança e assessoramento (equivalente aos atuais cargos de confiança).

Com isto, parece uma volta ao passado, com a extinção da exigência de concurso público para a maioria das admissões públicas, tal qual os celetistas pré-CF/88, que por beneplácito dos constituintes de então, transformaram-se, numa tacada, em estatutários. Cerca de 300 mil pessoas foram efetivadas e passaram a fazer jus à estabilidade, integralidade e paridade, em decorrência desta regra casuística benevolente, por estarem trabalhando nos órgãos da União desde 1983, sob o regime da CLT.

Ao mesmo tempo, o governo propõe fim ao instituto da estabilidade que surgiu no Brasil em 1915 com a Lei nº 2.924/1915, foi recepcionado pela CF de 1934 e desde então tem sido mantido em todas as Cartas Magnas nacionais.

Antes da CF/88 era direito conferido após dois anos de efetivo exercício e o servidor só perderia o cargo por infração disciplinar grave apurada em processo administrativo disciplinar (PAD).

A partir de 1988, a estabilidade passou a ser conferida após três anos ao servidor admitido em concurso público e aprovado em avaliação de desempenho, sendo possível a demissão nos casos de sentença judicial transitada em julgado, processo administrativo disciplinar e insuficiência de desempenho.

Em hipótese alguma, configurou-se, ao longo dos tempos, a estabilidade como um privilégio inamovível. Apesar de a avaliação de desempenho ainda carecer de regulamentação, tal fato não impediu a União, por exemplo, de demitir servidores, mesmo sendo estáveis.

Desde 2003, foram cerca de oito mil servidores demitidos “ a bem do serviço públicos”, por diversas razões, desde desídia até corrupção, negligência e abandono.

Portanto , não há que se falar em blindagem dos servidores, mas sim, em proteção do interesse público coletivo ao impedir perseguições políticas e pessoais e evitar que órgãos públicos percam profissionais qualificados, ao livre arbítrio do governante da hora.

Da mesma forma, se extinto o RJU, abre-se a porta para a contratação de apaniguados dos inquilinos dos palácios que se alternam a cada eleição, eliminando a memória, a profissionalização necessária ao bom atendimento à cidadania, por fim, loteando o Estado de maneira a fazê-lo sucumbir, dentro dos preceitos ditados pelo Senhor Mercado e dos princípios do Estado Mínimo tão defendido pelos liberais e privatistas.

Ninguém pode ser contra aperfeiçoar, melhorar o serviço público, em todos os Poderes e esferas de governo, fazendo assepsias em exageros e excessos.

Mesmo com suas carências, o brasileiro sofreria muito mais na maior crise sanitária de todos os tempos, se não houvesse um serviço público de qualidade. Nos hospitais, na segurança pública, na diplomacia, no atendimento virtual, e, na maioria expressiva das atividades, que permaneceram, mesmo em teletrabalho ou sofrendo os riscos da atividade presencial, atendendo aos cidadãos.

Mas é muito preocupante a possibilidade de precarização do serviço público, no cenário que se avizinha se prosperar a tramitação dessa PEC, nos moldes como concebida.

*Vilson Antonio Romero – Jornalista, auditor fiscal aposentado, conselheiro da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), assessor da presidência da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip)