Desde que Caetano Veloso decretou que Noel Rosa era racista, aderindo à estupidez do pensamento politicamente correto, uma turminha que bate palmas para tudo que ele diz escanteou o poeta da Vila. Com uma análise rasteira da letra de Feitiço da Vila – que pode ser ouvida no youtube – o senhor baiano tentou criar uma polêmica nos moldes da que Noel travou com Wilson Baptista na década de 1930.
Se estivesse vivo, o carioca poderia rebater com a letra de Filosofia: “O mundo me condena e ninguém tem pena, falando sempre mal do meu nome… Quanto a você …há de viver eternamente sendo escravo dessa gente que cultiva a hipocrisia”. Nocaute.
Mas agora mesmo Caetano produziu o disco Canta Noel. Teresa Cristina interpreta 14 das 259 canções que ele fez em 26 anos de vida, com um repertório de sambas muito conhecidos – Conversa de Botequim, Feitio de Oração – e outros mais obscuros.
Teresa Cristina não é exatamente uma grande cantora e não fica à vontade em muitas das canções, como Seja Breve ou Minha Viola, onde falta síncope e versatilidade vocal. Mas dá conta do recado, ainda mais porque vem acompanhada pelo extraordinário violão de Carlinhos 7 Cordas – e só por ele.
Mas ela se recusou a cantar Feitiço da Vila por causa da opinião de Caetano Veloso – quando Noel diz que “na Vila não tem ladrão”, ele imagina que Noel queria dizer que no morro tem; quando diz que a “Vila tem feitiço decente”, queria dizer que o feitiço dos negros é indecente, e que a Vila é elitista por ter nome de princesa – ou seja, condena Noel não pelo que escreveu, mas pelo que ele (Caetano) entendeu.
Pior para ela. Martinho da Vila redimiu Noel com uma luxuosa interpretação do samba.
Essa revisão do passado sob as lentes do presente nem sempre é fruto de idiotia, mas é uma desonestidade intelectual sem tamanho. O sentido de autoridade era diferente, os costumes obedeciam outra lógica e a disseminação da informação tinha outra dimensão.
A sociedade funcionava com outros valores; homens ditavam as regras, retratadas nas músicas. Não consta que Noel tenha agredido mulheres, mas fez Mulher Indigesta – “merece entrar no açoite”. Fez também Mentiras de Mulher – “se alguém vai pro cemitério é porque levou a sério, as palavras da mulher”.
Ataulfo Alves compôs Mulata Assanhada – ‘Ai, meu Deus que bom seria se voltasse a escravidão, eu comprava essa mulata e prendia no meu coração” – racista e machista. Sinhô fez Já Já – “se essa mulher fosse minha eu tirava do samba já já, dava uma surra nela que gritava chega, chega, ó meu amor”.
Moreira da Silva cantou: “Na subida do morro me contaram, que você bateu na minha nega, isso não se faz, bater numa mulher que não é sua”. E Zeca Pagodinho continua cantando, serelepe, Faixa Amarela – “Mas se ela vacilar, dou um castigo nela, dou-lhe uma banda de frente, quebro quatro dentes e cinco costelas”.
Com todo o machismo e racismo envolvidos, é melhor que a Juju Toddynho.
Publicado no Correio Braziliense em 18 de março de 2018