Dr. João é sujeito culto. Dia desses deixou escapar, numa frugal conversa no bar, que estava impressionado com a quantidade de atoardas que se espalham diariamente. Se ele falasse que estava abismado com tanta fake news, embora poucos no recinto falem inglês, ninguém estranharia, mas atoarda é hoje uma palavra que só se encontra nas palavras cruzadas de A Recreativa.
Foi o bastante para mudar o assunto, porque ali ninguém mais aguenta esses casos envolvendo nomes de políticos; sejam os que se defenestram ou aqueles que são defenestrados. O objeto passou a ser as palavras que não se usam mais, que dormem nos dicionários à espera de um beijo que as despertem para uma nova vida.
Palavras não morrem; hibernam. Muitas voltam renovadas, com significado mais amplo, caso do verbo defenestrar, que na origem francesa significava jogar pela janela (fenêtre), mas hoje serve para falar de qualquer coisa atirada para longe.
“Homessa!”, disse alguém, usando uma expressão que só não morreu por causa dos livros de Monteiro Lobato e do programa do Chaves, na boca do carteiro Jaiminho. A origem está na contração da expressão de pasmo ‘homem, e essa?’. Mas hoje – época em que é bonito falar palavrão – não use usa nem mais o puxa vida.
Há contradições, caso de catatau, que pode significar um volume grande ou um sujeito pequeno, mas também podia ser uma briga no berro, sem agressão física, ou – veja só – como sinônimo de pancada, coque. O fato é que as palavras estão aí para serem usadas e foi o próprio Dr. João que sacou outro exemplo: espaventado.
Pode ser trocado por assustado mas, convenhamos, é bem mais elegante; lembrou também de humílimo, que ele traduziu como um sujeito muito modesto, o contrário de otimates, que vêm a ser homens de grande influência. E iniciou-se uma pegadilha – uma discussão mais acalorada – sobre a vida das palavras.
Culpa desses sujeitos orgulhosos da própria ignorância, que desdenham de qualquer rasgo de cultura – andam cada vez mais abundantes, fenômeno que pode ser atribuído às redes sociais, que incentivam essa gente a tomar posição sobre tudo, ainda que a melhor contribuição deles fosse o silêncio. Profundo.
Outro dia mesmo levei uma bronca de um leitor por ter usado a palavra lanfranhudo numa croniquinha dessas; mesmo com a ressalva de que era uma palavra rara nos dias de hoje. Podia ter usado mal-humorado, torvo, carrancudo, iracundo, sanhudo, colérico ou até ensimesmado; mas não reagi. Não sou um tourunguenga, não quero briga.
Também no bar não era caso de reprochar, até porque não é lugar de repreender ninguém. E estávamos ali para espantar o calor; que canícula. Quem trabalha de gravata chegava sem paletó e afrouxando a incômoda peça, acenando em busca de um copo e de uma cerveja gelada; nenhum chato nos privaria daquele prazer.
A sorte é que quase sempre os inconvenientes vão embora cedo; são apressados, parecem ter uma cota de chatice para preencher todo dia e saem de bar em bar. E ficamos nós com nossas palavras.
Publicado no Correio Braziliense, em 8 de fevereiro de 2018