O adeus do professor

Publicado em MPB, Música

O violeiro Roberto Correa está se despedindo da docência na Escola de Música, onde criou a cadeira de viola caipira. Vai se dedicar à composição e a novos espetáculos. O texto a seguir foi publicado originalmente no livro Caipira Extremoso, de 2006, parte da coleção Brasilienses, e é uma tentativa de traduzir em palavras a música criada por Roberto Corrêa.

 

Limite Infinito

Antes de conhecer o violeiro, é preciso conhecer a viola. É instrumento de origem portuguesa, bem menor que o violão, com cintura mais acentuada e dez cordas de aço ou revestidas de metal, agrupadas duas a duas – no terceiro par, alguns violeiros usam linha de pesca. Quase sempre a viola é feita de maneira artesanal, com tampo de pinho, embora se use também a imburana de espinho, madeira cheirosa e resistente. O braço é de cedro. A lateral, como a do violão, é de pinho, flexível.

Viola caipira, viola sertaneja, viola de pinho, viola cabocla, viola de dez cordas, são alguns dos nomes que o instrumento recebeu no Brasil. As cordas também ganharam vários nomes, mas pode-se chamá-las assim: prima e contra-prima, requinta e contra-requinta, turina e contra-turina, toeira e contra-toeira, conotilho e contra-canotilho (de baixo para cima).

A afinação mais comum é o cebolão, em mi – mi, si, sol sustenido, mi e si) – ou em ré (ré, lá, fá sustenido, ré e lá). Teria sido ensinada por São Gonçalo, diz a crença.

Agora, o violeiro.

Ninguém é violeiro porque quer. Reza a lenda que é a viola quem escolhe o violeiro, escreve sua história e passa a protegê-lo contra todo o mal. Roberto Corrêa já tinha sido apresentado aos mistérios do violão por José da Conceição, na pequena Campina Verde, Minas Gerais, quando uma viola desviou seu caminho: num instante foi feito o primeiro pacto, que continua valendo até hoje, mesmo depois de ter passado por maus bocados, incluindo mistérios que a ciência dos homens – a mesma que Corrêa estudou na universidade – não pode explicar.

Mais do que um violeiro, Roberto Corrêa assume a defesa acadêmica do instrumento, mesclando o ponteado cortante com análises e estudos inéditos do instrumento nascido há 600 anos e trazido ao Brasil pelos portugueses. A obra de Corrêa tira a viola da posição exclusivamente folclórica que o instrumento ocupava, abrindo um mundo de possibilidades para as dez cordas; a cada disco, show ou livro, o violeiro amplia os horizontes, tirando da viola a poeira e o caráter de instrumento do passado e, por muitos, tido como limitado.

Os timbres dobrados de cada nota são extraídos num formato diferente do que se ouve há séculos, com a impressão de esgotamento do instrumento; mesmo apresentado a diversos povos pelos desbravadores lusos, a viola praticamente só existe no Brasil. Roberto Corrêa tem a mão direita fincada nas tradições do ponteado tradicional, mas a esquerda aponta para o futuro, desenvolvendo uma técnica que respeita as origens do instrumento, enquanto avança para um futuro que não aceita limites.

A formação híbrida do violeiro parece ditar essa nova estruturação musical, traçada com o cuidado típico dos homens do interior. Devagar, Corrêa vem quebrando barreiras e impondo sua música, buscando estruturas que, curiosamente, vêm de antes da criação da própria viola, como o recente mas profundo interesse pelos barrocos. Mas, de novo, o passado fica na sola, como se fosse apenas a base de uma nova arte.

O caminho tem sido longo. Corrêa sabe que a viola só vai sobreviver se puder se mostrar contemporânea, se não for apenas um instrumento de museu, como os exemplares que ele próprio deixou no Japão. Mas esta sobrevivência depende também da história. Talvez a dicotomia explique sua preferência pelo tradicional cebolão – em ré maior – para afinar o instrumento, enquanto procura expandir as fronteiras do uso da viola, no desafio de criar uma nova escola a partir de sua própria experiência.

A prudência não deve ser confundida com timidez. Ele não demonstra medo algum do futuro e sequer teve receio de mexer no instrumento para aperfeiçoá-lo, resolvendo problemas de afinação e calibragem. Usou seus conhecimentos acadêmicos de Física e a experiência dos luthiers Vergílio Arthur e Joaquim Santos, para alcançar os timbres exatos, resolvendo um secular problema de estabilidade.

A vida de violeiro começou com o grupo folclórico Olhos D’Água, que nunca ultrapassou as fronteiras da Universidade de Brasília. No mesmo período, financiado pelo CNPq e pelo Instituto Nacional do Folclore, começou a pesquisar o instrumento, descobrindo que o diploma de físico serviria apenas para enfeitar a parede. O resultado foi o livro Viola Caipira, lançado em 1983, e o show Parecença, no Teatro Galpão.

Era um músico ainda preocupado com os alicerces, o Roberto Corrêa que se apresentou. Didático, ainda não ousava sair do manual. Moço respeitador das tradições dos mestres do instrumento, foi imediatamente reconhecido com pioneiro de uma nova geração de músicos. Logo estaria tocando no Projeto Pixinguinha, dividindo o palco com o Quinteto Violado, fazendo recital na Sala Funarte, do Rio de Janeiro, no IV Encontro de Pesquisadores da MPB, e participando de programas de televisão – Som Brasil, de Rolando Boldrin, e Viola Minha Viola, de Inezita Barroso, entre outros.

Os discos e livros deixam claro que a pretensão de Roberto Corrêa não é apenas resgatar para si a tradição da viola ou entreter o ouvinte, mas deixar um legado. A cada nota, o violeiro procura mostra a vitalidade da viola caipira, do ponteado – mestre e aprendiz convivem na mesma pessoa na busca desse objetivo. Nessa busca, como ouviríamos depois, Corrêa lançou ideias e propostas bem mais radicais; mas com todo cuidado porque não se deve sacudir a árvore do folclore com muita força.

Em 1987, saiu o primeiro registro sonoro. Era só uma participação no disco Villa-Lobos, tocando, claro, O trenzinho do caipira. Vieram outros aperitivos. Embora tecnicamente muito bom, Roberto Corrêa carecia de mostrar o que ele próprio já imaginava: ir além do que se fazia com o instrumento. Mas seguiu em frente, mostrando arte no disco Cururu e outros cantos das festas religiosas – MT e homenageando o poeta em Carlos Drummond de Andrade – embora tematicamente limitado, o violeiro já começava a alterar o rumo de sua história, fazendo a trilha sonora e arranjos para a declamação do ator Lima Duarte.

Neste mesmo ano, o produtor J. C. Botezelli (Pelão) convida Roberto Corrêa para gravar o primeiro disco brasileiro exclusivamente de viola. Viola Caipira – um pequeno concerto é um belo disco, mas uma gravação tradicional, que se serve para mostrar que ele era um violeiro de mão cheia, e que não apenas emulava velhos violeiros. Também esconde o criador que estava prestes a irromper.

Foram gravadas 12 canções, temas que seriam repetidos no futuro, de maneira mais provocante. O dado curioso é que o engenheiro de som desse disco foi o finado cantor Jessé, que também havia se firmado na carreira em Brasília e era dono do estúdio. É neste época que Roberto Corrêa lança o livro Viola de Cocho, firmando-se definitivamente como pesquisador e se protegendo de eventuais críticas às mudanças que vinha promovendo, por parte dos puristas.

É o que basta para leva-lo à Alemanha para um projeto acadêmico, onde grava um novo disco – e que disco! Viola Caipira – Brazil é produto de um projeto da Unesco, primeiro volume da série Traditional Music of the World, uma imprescindível antologia da viola. São 22 faixas que servem para mostrar o potencial do instrumento em temas distintos.

A mistura de ritmos é proposital, para que o som do instrumento seja amplamente explorado; a abertura do disco é arrasadora, com uma versão de Chalana em que o violeiro faz a ponte entre a tradição e as novas possibilidade do instrumento, arrastando os acordes pelo braço e, em seguida, ponteando, num a demonstração de força, técnica e sensibilidade.

A viagem de Corrêa continua em temas caros aos brasileiros – Asa Branca, Tristeza do Jeca –, na erudição de O Trenzinho do caipira, em música que ele próprio recolheu e em outra que criou, como a impagável Suíte das cobras, dividida em quatro partes: jararaca, urutu, cascavel e caninana. Nenhum sinal da cobra coral que, segundo a lenda, deve ser enroscada nos dedos de um candidato a violeiro, fechando o pacto com o coisa-ruim.

E o violeiro solta a voz – ainda que claudicante – nas faixas Meio destrambelhada, Chora Viola, Tristeza do Jeca e Navalha na carne. Mas isso era para ser explorado bem mais tarde.

O que mais chama a atenção no disco de estreia é a segurança de quem não tem medo de ousar e abrir horizontes. Numa coleção destinada ao folclore, ele vai além e procura mostrar que a tradição pode evoluir, procurar novos caminhos. E foi o que ele continuou fazendo.

De volta ao Brasil, lança do disco Viola andarilha, independente, que serve de base para uma série de espetáculos, ainda na forma híbrida de explorar o amplo desconhecimento do instrumento da maioria do público criando uma espécie de curso relâmpago. O disco nunca ganhou uma versão em CD; marcava o fim da primeira fase da carreira.

Em seguida, uma aventura: a participação em um inusitado disco de músicos brasileiros em homenagem ao compositor italiano Nino Rota, no qual Corrêa aparece com uma insólita versão de La dolce vita – nada para entrar no currículo, além da curiosidade.

Em 1994, o violeiro mostra a evolução de sua música. É quando ele dá um salto no tempo. Uróboro, a serpente que devora o próprio rabo, dá nome ao disco, ainda hoje sua obra mais ousada. Nesta gravação ele apresenta o som da viola de cocho, instrumento significativamente diferente da viola caipira, uma vez que além de esculpida num tronco de madeira inteiriço- sarã ou ximbuva, preferencialmente – é escavada internamente para formar a caixa de ressonância, com um tampo que pode ou não ter um furo.

Uróboro não é um disco puro de música caipira. As influências urbanas que Corrêa recebeu estão bem evidentes no disco, embora a alma sertaneja seja o tom preponderante. Como qualquer adolescente de sua idade, o violeiro teve contato com o rock e outros gêneros importados – ele confessa que gostava de tocar músicas do Black Sabbath, um dos grupos mai8s pesados da Inglaterra – no violão, antes de descobrir a viola. É óbvio que não se vai encontrar o riff de Paranoid, ou coisa que o valha, neste disco. Uróboro é uma gravação de descobertas, com 21 peças próprias, formando o repertório básico de sua carreira de violeiro até então. O violeiro ousou não fazer nenhuma referência ao repertório tradicional do instrumento – tudo é novo, mesmo os temas que ele já havia apresentado.

Alguns temas já haviam sido gravados no disco alemão – caso de Anti-viola e da Suíte das Cobras – que aqui ganha apensos aos nomes (Caninana do Papo Amarelo, Urucu Cruzeiro, Jararaca Chateadeira e Cascavel quatro Ventas) – mas mesmo esses ganham abordagens novas em folha. A grande maioria dos temas, no entanto, era inédita.

Muitas músicas se impõem até hoje, como o impressionante rasqueado Peleja de siriema com cobra, que parte da emulação do canto do pássaro na viola e de uma estilização da postura da cobra, até o confronto. Ou ainda Desinfeliz, toada com que a estrutura de 12 compassos, semelhante ao blues dos negros norte-americanos, e que se desenvolve de forma surpreendentemente original. Com Uróboro, Roberto Corrêa coloca a viola em novo patamar.

A evolução viria dois anos depois na forma de disco Crisálida, quando ele inverte a mão. Usa apenas temas e canções muito conhecidas para mostrar os caminhos que a vila pode tomar. Traz de volta, por exemplo, O Trenzinho do Caipira (em duas versões, uma com orquestra) e explora habilmente temas criados especialmente para o instrumento , como a impagável Pagode em Brasília, que fez a fama de Tião Carreiro nos anos 1960, e outras mais distantes, como a gauchesca Prenda Minha ou a buliçosa Tico-tico no Fubá.

O violeiro está ainda mais seguro nessas gravações, aliando técnica e ousadia. Ao desprezar temas próprios, dobra o desafio ao buscar o novo na fonte do passado. É curioso como esta dicotomia se repete em toda a carreira. É fabuloso o resultado que ele alcança ao ampliar a capacidade dos instrumentos, mesmo os mais primitivos, como a viola de cocho, que aparece com destaque no rasqueado Siriema, dividindo espaço com uma rabeca de bambu.

E é notável a maneira como aborda duas canções de Ernesto Nazareth, que já foram desconstruídas e refeitas de muitas maneiras; desta vez, Odeon e Brejeiro se libertam das amarras impostas pelos chorões, que praticamente se apoderaram desses dois tangos brasileiros.

Crisálida é a definitiva comprovação de que Roberto Corrêa está léguas adiante de seus colegas. Enquanto a maioria procura apenas repetir o que vem sendo ouvido há décadas, numa canina obsessão pela preservação das raízes, Corrêa busca alternativas, dá saltos, transforma a maneira de tocar velhas canções e mostra novas formas de composição, propondo uma renovação do repertório básico da viola.

Sabe-se que violeiro não suporta comparações. Corrêa, no entanto, nunca pareceu muito preocupado com isso. Preferiu buscar seu espaço pela diferença. E conseguiu.

Mas era preciso um interlúdio nesta caminhada pela renovação e mais uma vez o produtor Pelão parece. Muito antes moda viola, a paixão de Corrêa pela música sertaneja começou quando ele, ainda em Campina Verde, ficava ao pé do rádio ouvindo Inezita Barroso cantar. E é com ela que ele passa a trabalhar num ousado projeto: gravar uma série de discos só com voz e viola, espécie de antologia da música interiorana de todo o país – é assim que entram o gaúcho Lupicínio Rodrigues (Felicidade), o paraense Waldemar Henrique (TambaTajá) e o pernambucano Gilvan Chaves (Prece ao Vento), embora a maioria das canções seja de São Paulo, Paraná e Minas Gerais. Foram gravados dois discos, 28 faixas.

Um projeto desses pode significar uma série de limitações para um violeiro. Inezita Barroso faz parte da história da música caipira do Brasil, tem um respeitável currículo de pesquisadora e arranjadora, além de ser uma das maiores autoridades na música popular interiorana. Mas se houve limitações para Roberto Corrêa, ele não deixa transparecer na gravação; ao contrário, ousa timbres, altera andamentos e brinca com o ponteado, ao mesmo tempo em que mostra reverência. E, mais tarde, dedicaria uma música à cantora, que seria utilizada como tema do programa de televisão dela.

Na mesma época, houve outro apontamento significativo.

Encontro de violeiro nem sempre é pacífico. Normalmente, não se bicam. Os mineiros Roberto Corrêa (de Campina Verde) e Renato Andrade (de Abaeté) disputaram por muito tempo, e nem sempre silenciosamente, o posto de maior violeiro do país, embora cada um tenha escolhido um caminho bem diferente para sua arte. O falecido Andrade optou pelas salas de concerto para vestir as modas de fraque e cartola, embora optando pelo método tradicional de abordagem, enquanto Corrêa mergulhou nas origens do instrumento para extrair uma nova forma de exploração musical.

O Centro Cultural Banco do Brasil poderia ter servido de ringue para a disputa mas, como mostra a gravação do  espetáculo que reuniu os dois violeiros, em 1995, cada um de uma vez – nunca em dueto/duelo, que mineiro não faz isso – quem ganha é o ouvinte. É flagrante a diferença entre as técnicas de cada um e, especialmente Corrêa, em noite inspirada, resultando num disco sensacional da série instrumental do CCBB, com repertório bem conhecido e testado, como o onipresente Pagode em Brasília e temas próprios.

Feita a reverência aos velhos sertanejos, o projeto seguinte é bem mais ambicioso. E o resultado, grandioso. Acompanhado por um quinteto de cordas, Corrêa lança No Sertão, um disco que – apesar da formação – não pretende ser erudito, mas apenas mostrar a riqueza que, muitas vezes, fica escondida por trás das canções populares. O repertório se destaca pela originalidade, uma vez que ao invés de explorar mais uma vez o filão caipira, buscou-se músicas criadas sob a inspiração das velhas modas. Assim, entre os autores, aparecem de João Pernambuco a Marcos Valle, de Pedro Sá Pereira a Sá & Guarabyra.

Os arranjos valorizam sobremaneira a tonalidade da viola, com o quinteto fazendo a moldura. E Roberto Correa se aproveita de cada milímetro para realizar uma das melhores performances de sua carreira gravada. Na linha de mostrar a capacidade musical do instrumento, abre campo para a utilização da viola de maneira mais ampla.

Seis anos depois de Crisálida, ele retoma o fio da meada no que pode ser marcado como o início da fase madura da carreira. O disco Extremosa-Rosa é o marco dessa mudança. O violeiro divide espaço com o bom cantor de voz pequena, mas bem colocada, o uso de alguns temas anteriormente explorados serve para mostrar que as raízes continuam firmes, mas procura-se algo mais, já que os temas ganham abordagens inteiramente novas.

Bicho-de-pé e Futrica Infinita estão nessa categoria, que mostra o crescimento do artista. Outras ganham versões vocais, caso de Chora Viola e Moda Destrambelhada (com letra de Hermínio Bello de Carvalho). A tradição tem sua âncora em Queluzinho, singela homenagem à escola de violeiros de Queluz de Minas, tocada num instrumento antigo e feito naquela região.

Um ano depois, nesse trabalho em progresso, Corrêa lança Esbrangente, de certa forma, uma continuação do trabalho de maturação, mas também uma espécie de freio de arrumação. É um jeito de ele, por sobre o ombro, espiar o que vinha fazendo até o momento. Ao lado dos companheiros de viola Badia Medeiros e Paulo Freire, produz uma gravação impecável, verdadeiro encontro de músicos que, embora de gerações diferentes, têm objetivos semelhantes.

Mas este é apenas um projeto, sem ligação com a meada que começou de verdade em Uróboro. E a sina do violeiro ainda está longe do fim. Um milagre o fez sobreviver para chegar até aqui, mas o desafio ainda não foi vencido. Só ele é capaz de manter vivo o interesse pela viola, de tirá-la da lista de instrumentos em via de extinção, onde estão parentes próximos como a viola de gamba. Correa não tem pressa e sabe que, para isso, pode ser preciso um novo rompimento. Mas como dizem os mineiros, causo quando é bom é compriiiido….