O último gozo do mundo começou a tomar forma como uma novela curta feita sob encomenda. O escritor Bernardo Carvalho estava em casa, isolado por causa da pandemia, e topou o pedido de um produtor de cinema para escrever uma história que se passasse logo após a quarentena. O combinado era o produtor pagar uma quantia mensal em troca do trabalho. O contrato não seguiu adiante, mas o livro, sim. O romance que chega às livrarias pela Companhia das Letras é descrito como uma distopia, mas é tão próximo da realidade atual que pode ser lido como uma visão catastrófica para o que nos espera após a pandemia, caso ela acabe.
No livro, uma professora de sociologia e autora que escreve sob pseudônimo parte com o filho em uma viagem em direção a um retiro. O menino é um acaso de um relacionamento fortuito e inconsequente. Quando a pandemia começa, a professora acabava de se divorciar. Brasil adentro, em uma jornada marcada pela presença de personagens ora misteriosos, ora panfletários, a personagem se depara com um país despedaçado e perdido.
Classificado no site da editora como distopia, o romance se parece mais com uma fábula. “Quando o produtor de cinema me pediu para escrever o texto, ele disse que precisava ser um futuro imediato, não longínquo, não ficção científica. O que a gente está vivendo é um negócio que, há dois anos, seria considerado uma hiperdistopia, então o próprio sentido de distopia mudou completamente com essa pandemia e com as consequências sociais e individuais. É um livro tentando ver um futuro sem conseguir ver”, avisa o autor. “Mais que uma distopia, queria algo perto de um conto de fadas, como se fosse livro infantil, uma coisa entre parábolas e fábulas. Acabei optando pela fábula: não é realista, tem uma moral, é um texto curto, mas seria uma fábula sem moral, no sentido de ser uma narrativa curta, como se fosse engasgada, que não sai do lugar.”
O romance anterior de Carvalho foi publicado em 2016. Simpatia pelo demônio falava do amor a partir de uma certa idade. Desde então, o autor suspendeu a escrita de um romance em andamento para escrever O último gozo do mundo. Também escreveu uma peça para um grupo de teatro do Porto (Portugal), encenada em 2019, e deu aulas na Freie Universitat de Berlim, numa cátedra para professor estrangeiro.
Perplexo com a condução da situação sanitária no Brasil, ele queria escrever sobre a impossibilidade de prever o futuro, uma condição acirrada pela pandemia. “É inimaginável o que estamos vivendo, é muito peculiar no Brasil nessa situação com covid e esse governo. É como se fosse um dia da marmota: diariamente você acorda e diz ‘não é possível que as pessoas tenham votado nisso, que as pessoas quisessem isso, não é possível que o Brasil seja isso, que ninguém faça nada, que as pessoas não estejam na rua’. Isso demanda uma reação incrível”, diz.
A relação com o tempo também afetou a narrativa do romance. Enquanto escrevia, Carvalho tentou pensar o que era estar num lugar e numa situação que se repetem diariamente. “Me interessava essa ideia de tempo: o que acontece com a narrativa quando o tempo é posto em questão? As narrativas ainda são possíveis? Ainda dá para acreditar num tempo cronológico? Que tempo novo é esse que a gente está vivendo num presente estendido?”, questiona. Em entrevista, o escritor carioca, ganhador de prêmios como o Jabuti, APCA e Portugal Telecom, fala sobre o novo livro e sobre como tem feito para encarar o Brasil da pandemia.
“É sabido que a morte como condição estruturante da política resulta na falta de legitimidade ou competência”
De Bernardo Carvalho. Companhia das Letras, 144 páginas. R$ 49,90
Por que escolheu uma socióloga como protagonista de O último gozo do mundo?
Sociologia é uma disciplina com uma compreensão do mundo que se tornou muito hegemônica hoje, tem a coisa das lutas identitárias, tudo passa por uma compreensão sociológica das artes. Isso, por um lado, me incomoda um pouco, por outro lado talvez seja interessante, mas queria botar a personagem um pouco no olho do furacão, que incorporasse uma contradição muito presente hoje que é essa relação, por um lado, das representações artísticas, um pouco cerceadas pela sociologia, observadas e um pouco limitadas até por um discurso sociológico e histórico. Não chega a ser uma crítica, mas queria que ela incorporasse e encarnasse essa dualidade. E ela nunca assume, o que ela assume é o discurso sociológico mas a produção artística, na representação literária ela não assume. E a representação literária contradiz a ideia de uma identidade única que ela defende como socióloga. O que ela diz é propositivo e, nas artes, ela pode ter qualquer identidade, até contraditória, quando ela tenta fazer um romance picaresco que é contraditório com o que ela tinha escrito até então.
O livro tem alguns personagens que parecem sair da realidade, como o vidente do interior que não tem memória e é motivo de peregrinações de todo tipo…
Tem essa ideia mística no Brasil, sobretudo no Planalto Central, em Brasília, nesses recantos profundos em que tem umas espécies de profetas e místicos. Isso me interessa no Brasil porque é estranho, é como se, diante da tragédia que é o país, acabasse sobrando pra gente esse messianismos, essa ideia de se agarrar a uma coisa mística. Essa figura é meio emblemática nesse sentido e eu queria que fosse criada pelo próprio vírus, um vírus que destrói a memória e cria o profeta. Tem a ver com o Brasil, um país que recusa a memória e sonha com essa profecia. Tem essa ideia dessa figura salvadora, messiânica e que funciona um pouco numa espécie de contrapartida de uma memória que se perde, ou que nunca se cria. Esse personagem é uma alegoria disso.
Em 2016, em entrevista sobre o romance Simpatia pelo demônio, você contou que escreveu o livro depois de uma crise de meia idade na qual tinha a impressão de estar seguindo para a morte em vez de renovar com a vida. E agora? Como está vivendo a crise nacional?
O país está sendo espoliado a olhos vistos. E com uma passividade da população que é muito incrível, dá uma aflição! Acho que o negócio da morte e do vírus, no Brasil, é quase secundário. A ideia da pandemia é terrível, mas a combinação do vírus com o Bolsonaro é uma coisa que nem um inferno imaginária. Não sei de que círculo do inferno esse negócio pode ter surgido. E parece um negócio todo calculado, porque não tem fim. É um momento de uma indignação que não cabe em mim. Tenho vontade de explodir todo dia. E não cai o governo. É uma provocação diária, uma desfaçatez, uma ofensa, uma humilhação diária aos brasileiros, descarada.
Como acha que chegamos nesse ponto?
O que mais me espanta são as pessoas que votaram nesse governo. Só tem três possibilidades: ou são burros, cegos ou estavam de má fé. E acho que estavam de má fé. E tem um negócio de lutas de classes: em um país escravista, você não quer pagar imposto para dar educação para os mais pobres, saúde para os mais pobres. Você quer que o cara trabalhe pra você e, se ficar doente, morra o mais rápido possível. É uma situação que não tem saída a não ser com focos de resistência, é uma tentativa de distopia imediata para um pouco lidar com esse estado desse presente insuportável que é o Brasil. Esse governo é responsável por esse estado e acho que essa gente devia pagar.
A violência também estava presente no romance e agora, ela aparece ainda mais. Como encara a violência moral que estamos vivendo agora no país?
É terrível, é exaustivo, é um negócio que vai te minando, tirando sua força. Porque tem ataques de diversas frentes. O que acho incrível no Brasil, moralmente, é descobrir a quantidade de gente disponível para trabalhar contra o país. É impressionante. É o governo do ressentimento, do despreparo, de gente que não tem educação, que é contra a educação, porque sua sobrevivência depende de não ter educação, e uma ganância do ressentimento.
Em certo momento do livro, uma personagem pergunta: “Você já reparou que toda foto de grupo de brancos racistas tem um preto no fundo para constar”. O livro é cheio de referências ao que está acontecendo e a personagens específicos?
Cheio de referências e, ao mesmo tempo, tem um negócio que talvez seja novo. Como eu estava confinado, é como se fosse uma linguagem que tentasse, sem muito espalhafato, criar uma possibilidade de mundos paralelos. É como se, enquanto estava confinado, pela imaginação eu pudesse, naquele tipo de linguagem, criar saídas, abrir mundos, como se aquilo fosse minha saída para o mundo, meu respiro. É ambíguo porque esse negócio da imaginação, ao mesmo tempo, é crítico e pode representar um mundo de horrores. A imaginação é sempre uma saída, uma linha de fuga, e fiz esse livro com muito prazer, eu estava livre. Confinamento é como quando você entra em avião: sabe que naquelas horas não vai acontecer nada. O confinamento me deu isso, fiquei completamente focado num projeto imaginário, tudo bem baseado na realidade, mas na possibilidade de criação de um outro mundo.
O quão culpados nós somos somos, enquanto sociedade, do que está acontecendo? Estamos imunes à realidade, como você diz logo no início do livro: “Na falta de imunidade ao vírus, mais de um terço da população tornou-se imune à realidade”?
Essa frase é bem realista, baseada numa impressão do Brasil. Esse negacionismo é muito impressionante: como, diante de dados e fatos, pessoas se recusam a encarar o real? Isso tem a ver com uma incapacidade cada vez maior de encarar o que nos contradiz. Para mim, é interessante fazer uma literatura que traga um pouco esse lugar da contradição e não uma literatura que venha suprir uma demanda do leitor. Está acontecendo uma loucura narcisista no mundo, na coisa das mídias sociais, na internet e nessas bolhas. Como você se relaciona com o outro? Você não admite contradição, não há possibilidade de se relacionar com o real porque o real é o que te desdiz o tempo inteiro e a internet está baseada em você eliminar o que te desdiz e dar like. É um terreno fértil para o negacionismo porque é um mundo em que a contradição é insuportável.