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João Carlos Souto: “O presidente Lula e o presidente Biden têm muito em comum”

Publicado em Eixo Capital

À queima-roupa // João Carlos Souto, professor de direito constitucional, procurador da Fazenda Nacional e estudioso da Suprema Corte e da política dos Estados Unidos, autor da obra Suprema Corte dos Estados Unidos – Principais decisões

Por Ana Maria Campos

Depois de tantos ataques dos bolsonaristas, a eleição de 2022 foi concluída sem atropelos. A Justiça Eleitoral saiu vitoriosa?
Sagraram-se vitoriosas a democracia e a sociedade brasileiras. A Justiça Eleitoral tem um papel a parte, pela rapidez das respostas e firmeza de suas decisões. Conduziu o pleito com extrema competência. O que demonstra o acerto do legislador de 1932 que a criou. O Brasil, nesse aspecto, caminhou e caminha melhor que o sistema estadunidense, em que a eleição é conduzida toda ela no âmbito estadual, em um sistema federativo que privilegia o Estado-membro, fruto de um processo histórico que remonta à criação do país com a Constituição de 1787.

Quem é o grande símbolo das eleições?
As instituições brasileiras, que demonstraram maturidade. O Legislativo, especialmente na figura do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Mas, sem sombra de dúvidas, o grande símbolo foi e continua sendo o ministro Alexandre de Moraes, que desde os primeiros momentos não se curvou às ameaças a si próprio e até à sua família, e no meio de tudo isso soube conduzir o processo com extrema competência e altivez. E aqui peço licença para uma breve comparação: Em 1954, o juiz Earl Warren, ex-governador da Califórnia e então exercendo o cargo de presidente da Suprema Corte, alterou o curso da história dos Estados Unidos ao elaborar o voto que acabou com a discriminação racial oficial nas escolas públicas, prática disseminada no país desde o fim da Guerra Civil. O caso Brown v. Board of Education é um dos marcos do bom ativismo da Suprema Corte da maior economia do mundo. O Brasil, 68 anos depois, testemunhou a Justiça brasileira (o STF e o TSE), sob a liderança do ministro Alexandre de Moraes, resolver um problema igualmente gravíssimo. A ameaça de ruptura democrática vinda das entranhas de um dos poderes do Estado brasileiro. Em 2022, Moraes encarnou Warren. Ambos, ao seu modo e ao seu tempo, contribuíram para construir um país melhor.

Ministros do STF têm sido hostilizados por bolsonaristas nas ruas. Está difícil ser magistrado no Brasil?
Nunca se viu tamanha incivilidade e arriscaria dizer que não fosse o incentivo institucional de um dos poderes, provavelmente o Brasil não estaria testemunhando esses exemplos grotescos e antidemocráticos. A democracia pressupõe respeito à opinião contrária, liberdade para se expressar, mas ela não compactua com violência física, intimidação e a retórica de alguns em querer destruí-la. A Constituição não assegura nenhum tipo de liberdade que conduza à sua própria destruição. É insanidade defender o contrário.

Você é um especialista em política dos Estados Unidos. Pode explicar por que republicanos estão votando contra um integrante do partido, Kevin McCarthy, para a presidência da Câmara dos Deputados?
Trata-se de uma franja do Partido Republicano. Justiça seja feita, o líder McCarthy tem maioria folgada no Partido. Observe que em 222 deputados ele na primeira tentativa teve 213 votos. Na segunda, terceira e quarta ele perdeu apoio, ainda assim, na quarta tentativa ele teve 201 votos. O que está acontecendo? Simples, os radicais à direita (far-right) acham que ele não é combativo o suficiente. Por combativo, entenda-se ler pela cartilha desses radicais. Importante ressaltar que a última vez que ocorreu um impasse dessa natureza foi em 1923. Incrível, há um século isso não ocorria.

O que as eleições de novembro podem indicar para o projeto de reeleição de Joe Biden?
Pode indicar que ele tem chances na reeleição. O que aconteceu em novembro de 2022 foi histórico. Há algumas décadas que o partido do presidente não tinha uma performance tão boa na eleição de meio de mandato (midterm elections). Conquistou uma cadeira a mais no Senado e teve boa performance na Câmara. Isso tudo com uma guerra na Europa, alta no preço de combustíveis e inflação acima da média nos EUA.

Lula aceitou convite e deve se encontrar com Joe Biden em Washington em fevereiro. Como será, na sua avaliação, a relação do governo brasileiro com os Estados Unidos, sob a gestão de Lula?
O presidente Lula e o presidente Biden têm muito em comum. Começa por escolher profissionais competentes para o seu Ministério, como Blinken na Secretaria de Estado e Jorge Messias na AGU. São oriundos de família operárias, são de esquerda e acreditam no Estado como instrumento transformador. Acreditam na livre iniciativa, mas não cultuam e nunca cultuaram o “Deus mercado”. E mais que isso, são exímios negociadores, sabem como lidar com os demais poderes, especialmente o Congresso. Desde Franklin Roosevelt, um presidente norte-americano não conseguia aprovar uma agenda legislativa tão ampla como Biden conseguiu. Por sinal, no momento em que concedo essa entrevista para você, Biden e o líder do Partido Republicano no Senado, Mitch McConnell, estão no Estado do Kentucky, base eleitoral de McConnell, para inaugurar obras lá e em seguida em Ohio. O que confirma o que eu disse há pouco sobre capacidade de negociação. De modo que a relação Brasil/EUA, com Lula e Biden, tende a ser melhor do que FHC/Clinton, em meados da década de 1990. Sou presidente do Instituto Brasil-Estados Unidos de Direito Comparado, e lá no Instituto temos todo o interesse e boa vontade para colaborar nesse sentido, embora saibamos das nossas limitações.

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