Nas entrelinhas: Como é difícil escrever sobre a morte de Dad Squarisi

Publicado em Brasília, Comunicação, Cultura, Educação, Literatura, Memória, Política

A admiração e o afeto continuam existindo, apesar da perda física. Hoje, me despeço dessa grande dama do nosso idioma. Vai, Dad, ensinar português nas estrelas!”

Conheci Dad Squarisi quando cheguei ao Correio Braziliense, em 2004, para ser repórter especial da Editoria de Política. Nessa época, circulava na redação uma mensagem do “Aquário” — no jargão da redação, a sala com paredes de vidros nas quais os editores da primeira página se reúnem para “fechar” o jornal. Eram observações sobre a edição do dia, entre as quais os erros de português que escapavam da revisão e eram devidamente assinalados, para que não se repetissem.

Chamava-se “Pelourinho” e doía mais pela vergonha íntima que passávamos do que pela dureza das críticas. O puxão de orelha não citava o autor nem a matéria. Às vezes, era uma dica para melhorar a qualidade do texto: “Fim de semana ou final de semana? Tanto faz. Ambos dizem a mesma coisa. Qual o preferível? Menor é melhor. Fique com fim de semana. Você ganha uma sílaba.”

Quando a frequência de erro aumentava, Dad programava uma aula de português. O auditório do Correio ficava cheio. Foi o caso da vírgula nas orações restritivas. Didática, tanto nas palestras quanto nas aulinhas, usava exemplos divertidos e “causos”, que parecia colecionar e catalogar. “Oração explicativa pede a vírgula; restritiva, não”. Nos 100 anos da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), uma peça comemorativa fez muito sucesso: enaltecia a importância da vírgula. Ela pode mudar o sentido de quase tudo.

O Manual da Redação do Correio, de autoria da Dad, com o tempo, virou obra rara. Como a rotatividade na redação é alta, o colega mudava de emprego e levava consigo o Manual. No principal jornal do Distrito Federal, Dad formava jornalistas para todas as áreas de uma redação e a concorrência vem em busca dos novos talentos. Para ninguém levar meu exemplar, por engano, escrevi meu nome na lombada do manual, um “macete” do tempo dos dicionários de papel.

Dad tinha uma sala só para ela e os editorialistas, mas circulava muito pela redação. No meu caso, como sou repórter de política e minha bancada fica próxima ao corredor principal da redação, era comum ela parar para conversar comigo. Pedia uma informação, às vezes uma sugestão de editorial. Fazia isso com a maior naturalidade, mas meu ego exultava, apesar de ser macaco velho: era uma espécie de reconhecimento de parte de alguém que nós tínhamos como referência profissional.

Libanesa, Dad era poliglota — falava árabe, inglês, francês e espanhol. Seus conhecimentos de latim, língua muito citada nos tribunais, ajudava a redação a não trocar via crucis por via-crúcis. “Latim não usa hífen nem acento”, explicava. Algumas palavras em latim são inevitáveis numa redação, como habeas corpus. No caso de Brasília, carpe diem (aproveite o dia de hoje) também era um famoso bar da Asa Sul, muito frequentado por jornalistas e suas fontes. Dad nos deixou muitos livros sobre textos jornalísticos e a língua portuguesa, alguns para crianças.

Brava luta

Nossa “mestra” lutou bravamente contra o câncer. Após seu tratamento no Albert Einstein, escreveu um livro sobre o hospital, em agradecimento aos médicos, enfermeiros e funcionários que a acolheram. A recidiva da leucemia, alguns anos depois, foi duríssima. Por isso, a frequência na redação se tornou cada vez mais rarefeita nos últimos anos, mesmo antes de pandemia. Sua editora-adjunta, Rosane Garcia, amiga e discípula, é minha vizinha de bancada.

Tive dois encontros casuais com Dad nesse período mais recente da doença. Um foi num pequeno restaurante italiano do Lago Sul — ela almoçava com uma amiga jornalista. Estava abatida, mas sorridente. Era elegante por natureza e não deixava a peteca cair. Não reclamava da vida, nem mesmo da dor. A outra foi bem mais recente, na área da piscina do apart-hotel onde morava. Conversava com outra amiga, que eu não conhecia. Estava muito mais fraca, mas continuava com aquele sorriso que a todos cativava.

Não posso dizer que sou um dos amigos da Dad no sentido estrito da palavra. Sou um dos seus colegas de trabalho e grande admirador. Foi um privilégio conhecê-la e sei que sua morte é uma imensa perda para o jornalismo e nossa cultura. É muito difícil a despedida definitiva, ainda mais numa idade em que a morte de pessoas próximas, parentes, amigos e colegas de trabalho, é cada vez mais frequente. Sempre fica aquela sensação de que logo chegará a nossa hora, um sentimento que não tínhamos quando éramos jovens e “imortais”.

Estou de luto. Na coluna de sexta-feira, não consegui escrever sobre sua morte. Dad compreenderia: “Quem já passou horas diante de uma tela em branco de computador em dúvidas sobre por onde começar, sabe o que é angústia”. Para nós, jornalistas, a morte é uma notícia. Fomos treinados para tratar desse assunto jornalisticamente, ou seja, como um fato do cotidiano. É comum nas redações que os obituários estejam prontos antes mesmo de alguém importante falecer. Quando a angústia se mistura com o luto, porém, tudo fica muito difícil.

Embora a morte seja o que existe de mais previsível nas nossas vidas, o rito da morte concentra e compacta toda uma vida, num momento único. E o luto transcende o rito. É que a admiração e o afeto continuam existindo, apesar da perda física. Hoje, me despeço dessa grande dama do nosso idioma. Vai, Dad, ensinar português nas estrelas!