Nas entrelinhas: Com guerra, Putin volatilizou US$ 630 bilhões em reservas

Publicado em Comunicação, Economia, EUA, Guerra, Política

Estados Unidos, o Canadá, o Reino Unido e a União Europeia incorporam a narrativa ideológica como paradigma de divisão do mundo entre o Ocidente democrático e o Oriente autocrático

Após três dias de debates, a Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) aprovou, ontem, uma resolução contra a invasão da Ucrânia pela Rússia por 141 votos a favor, cinco contra e 25 abstenções. Foi uma derrota acachapante do presidente russo, Vladimir Putin, que obteve apoio apenas de Belarus, Coreia do Norte, Eritreia e Síria, além do voto da própria Rússia. África do Sul, China e Índia, parceiros dos Brics, se abstiveram, mas o Brasil votou contra a Rússia, apesar da retórica de neutralidade do presidente Jair Bolsonaro.

Há um significado adjacente à condenação que precisa ser levada em conta: a ONU legitima as sanções econômicas duríssimas adotadas pelos Estados Unidos e seus aliados do Ocidente, sobretudo o Canadá, o Reino Unido e a União Europeia. Nunca antes mecanismos de governança da economia mundial foram acionados dessa maneira, o que praticamente deixa a Rússia fora das principais cadeias de produção e comércio mundial. Mesmo a China, que é a segunda maior economia do planeta, sente a pressão das medidas, que não adotou. A operação de cerco à economia russa inclui, também, as redes sociais e as criptomoedas.

Ontem, no Twitter, a economista Monica de Bolle fez algumas considerações muito importantes sobre o impacto das medidas na economia da Rússia. Seu foco principal foi o acesso do Banco Central russo às reservas acumuladas por Putin nos últimos anos, aparentemente com o propósito de resistir às sanções econômicas do Ocidente caso invadisse a Ucrânia, o que acabou acontecendo. “Mas a Rússia tem US$ 630 bilhões em reservas, eles têm dinheiro”, aspas dela. “Têm mesmo?”, indaga.

Vou resumir seu raciocínio: reservas internacionais são a contraparte de transações de comércio e investimentos no balanço de pagamentos de um país. Esses ativos líquidos podem ser facilmente transacionados no mercado internacional, mas não em dinheiro vivo. “Não há US$ 630 bilhões armazenados em algum cofre blindado subterrâneo. Reservas são tipicamente detidas na forma de títulos e de ouro. Majoritariamente, títulos. Que títulos? Títulos dos governos que emitem moedas de reserva. Quais moedas de reserva? O dólar, o euro, o iene e até o yuan.”

Esses títulos funcionam como uma espécie de notas promissórias, emitidas de um governo para o outro, que se compromete a honrar o valor dos títulos. Ou seja, as reservas estão em títulos e não em dinheiro. Se os governos se recusam a ressarcir esses títulos, os mercados não podem intermediar esses recursos. Ou seja, as reservas nada valem. Com isso, os rublos viram uma moeda podre. “Se o sistema bancário perde a sustentação porque o Banco Central não pode acionar reservas, os depósitos das pessoas estão em risco. Como? Bancos operam com liquidez fracionada. Nenhum banco consegue ressarcir 100% dos depósitos.”

Segundo ela, inevitavelmente, a população perceberá isso. “Desvela-se, portanto, a crise bancária clássica, aquela que conhecemos muito bem. Suponhamos que as pessoas queiram a devolução dos seus depósitos denominados em rublos — a corrida bancária sobre a qual falava. Suponhamos que o Banco Central imprima rublos para dar conta da demanda e segurar os bancos. O rublo, já derretido, vira pó”, conclui.

Governo mundial

A envergadura das sanções econômicas lançadas contra a Rússia e sua adoção por grandes corporações multinacionais, num momento em que a economia mundial começa a dar sinais de recuperação econômica, depois de mergulhar na recessão decorrente da pandemia de covid-19, merecem outra reflexão específica. É um novo sistema de governança da economia mundial que está sendo configurado. Na crise ucraniana, a ação institucional do Ocidente, alicerçada na definição e garantia dos direitos de propriedade, parece ultrapassar o velho modelo neoclássico.

De um lado, os Estados Unidos, o Canadá, o Reino Unido e a União Europeia incorporam a narrativa ideológica como paradigma de divisão do mundo entre o Ocidente democrático e o Oriente autocrático, sustentada pela projeção de poder dos Estados Unidos por meio da Otan. Esse eixo das relações internacionais subordina as relações comerciais especificamente. De outro, rechaçam a caracterização de governantes como Putin como um ser autônomo em relação à sociedade e seus mecanismos de representação, ou seja, situa a Rússia e seus aliados no campo dos estados autocráticos, ainda que o presidente russo tenha sido eleito pela maioria.

No caso das sanções econômicas, na prática, o Estado liberal ganha a possibilidade de definir e cassar direitos de propriedade em casos de conflitos internacionais, como está acontecendo agora com dirigentes políticos e oligarcas russos, inclusive os que vivem no Ocidente. É uma grande mudança de paradigma, cujas consequências se projetam para o futuro das relações econômicas globais. O mercado e a sociedade, por meio de convenções e outros mecanismos, estimulam o cumprimento de contratos e garantem os direitos de propriedade, porém, nessa crise, esse status é insuficiente. A mão pesada do Estado democrático do Ocidente estabelece novas regras do jogo, que podem não se restringir à Rússia.