VISTO, LIDO E OUVIDO, criada desde 1960 por Ari Cunha (In memoriam)
Hoje, com Circe Cunha e Mamfil – Manoel de Andrade
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Há episódios que condensam, num único gesto, o cansaço de uma população inteira. O caso do proprietário do restaurante Dom Léon na 112 sul, que reagiu a uma tentativa de invasão e matou o ladrão que avançava contra seu lar e sua esposa, tornou-se, em poucas horas, mais do que um crime noticiado: virou um símbolo. Esse e tantos outros mais atuais são símbolos de um esgotamento moral que atravessa todas as classes sociais, da indignação que já não se limita aos grupos de mensagens, mas transborda para as ruas digitais, onde milhares se manifestam em apoio ao comerciante que ousou fazer aquilo que o Estado, por inércia, recusa-se a fazer: defender. A polícia prende, o juiz solta.
Entre fotos de pratos e relatos da clientela, as redes sociais do Dom Léon transformaram-se num fórum improvisado, onde se deposita não apenas solidariedade, mas também uma acusação difusa contra os que terceirizaram a segurança pública ao improviso. O contraste é grotesco: quem trabalha, cria empregos e mantém a dignidade de portas abertas vê-se algemado e levado à delegacia, enquanto quem rouba, quando sobrevive, costuma voltar brevemente às ruas para cometer novos crimes, digno de piedade, com apoio de psicólogo do Estado e advogado pago pelo erário. A fiança de oitocentos reais paga pelo dono do restaurante não é só o preço burocrático da liberdade: é o recibo de uma inversão de valores que trata o trabalhador armado de coragem como se fosse o delinquente e o delinquente como se fosse o verdadeiro injustiçado. Não faltam oportunidades para melhorar de vida. Mas a lacuna educacional dificulta cada passo. Mais uma vez, apesar dos impostos, não há investimentos do capital humano.
Em casos onde os bandidos são surpreendidos, talvez o que mais venha a revoltar tantos brasileiros não seja apenas o crime em si, mas o que ele representa: a completa naturalização de uma rotina de medo. Não se trata mais de casos pontuais ou de violência episódica. Trata-se de um estado de sítio informal, uma resignação coletiva em que cada família se torna refém da estatística, sabendo que poderá ser a próxima. O restaurante, que deveria ser um lugar de convívio, sustento e partilha, converte-se em trincheira improvisada, cada comerciante num vigia relutante que paga impostos a um poder público que só aparece para multar, taxar ou condenar.
O episódio não se explica apenas pelo contexto imediato, mas por um processo mais longo e corrosivo. Durante anos, parte das autoridades preferiu minimizar a criminalidade, tratando o problema como uma “questão social”, passível de retórica e seminários. Enquanto isso, a população comum coleciona boletins de ocorrência, câmeras de vigilância, grades nas janelas e medo noturno. No fundo, a comoção que se viu não é apenas pelo dono do restaurante, mas pelo pressentimento de que todos poderíamos estar em seu lugar. A indignação, nesse sentido, não é apenas moral, mas existencial: o brasileiro médio percebeu que sua vida vale menos que o discurso oficial. São muitos os brasileiros que saem de casa para o trabalho sempre com a sensação que talvez não voltem.
São crimes em todo o DF onde a reação popular é imediata e quase unânime. Uma espécie de plebiscito informal: milhares de comentários nas redes sociais, do cidadão anônimo ao pequeno empresário, dizendo que não suportam mais o constrangimento de pedir licença para existir. O caso do Dom Léon deixa explícito que a sociedade civil tão difamada por quem insiste em vê-la como “massa ignorante” ainda conserva algo que o Estado perdeu: senso de justiça.
O episódio do Dom Léon não deveria ser tratado como exceção, mas como sintoma. Um sintoma de que chegamos ao ponto em que a paciência do cidadão comum, aquele que trabalha e paga todas as contas, esgotou-se. O apoio quase unânime que se viu é mais do que solidariedade. É um recado, um basta coletivo ao desamparo. É o aviso de que o povo cansou de ter vergonha de viver, de ter medo de existir.
Chama atenção que, entre as milhares de manifestações de solidariedade, muitos brasilienses tenham encontrado uma forma simples de se posicionar: prometem frequentar o Dom Léon, consumir seus pratos e manter acesa a chama que, por ora, o Estado parece empenhado em apagar. A clientela diz, em uníssono, que há gestos que transcendem o comércio e que ocupar uma mesa de restaurante pode se converter, silenciosamente, em um ato de desagravo. Cada visita planejada carrega algo maior do que o simples apreço pela gastronomia local: carrega o reconhecimento de que quem protege seu lar merece, ao menos, o benefício da dúvida — e, se possível, o calor discreto de uma casa cheia.
Tem havido algo de reconfortante nessa mobilização pacífica, nesse desejo quase instintivo de retribuir coragem com presença, dignidade com afeto econômico. Entre as linhas de cada comentário de apoio, há uma torcida muda para que o Dom Léon prospere, não apenas como restaurante, mas como lembrança viva de que a sociedade civil, por mais exausta que esteja, ainda sabe distinguir o justo do arbitrário. Se a omissão virou rotina e a covardia se fantasiou de protocolo, resta ao cidadão comum essa forma modesta de resistência: sentar-se à mesa, consumir com respeito e, sem alarde, afirmar que não desistimos por completo uns dos outros.
A frase que foi pronunciada:
Poder e violência são opostos; onde um reina absoluto, o outro está ausente. “A violência surge onde o poder está em perigo, mas, deixada à própria sorte, termina com o seu desaparecimento.”
Hannah Arendt

História de Brasília:
O nome empregado na maioria dos golpes foi do servidor Barros de Carvalho, e os chantagistas conheciam tanto seus hábitos, que falando pelo telefone para sua residência, recomendavam com insistência para que quando fizessem a mala não esquecessem dos remédios. (Publicada em 06.05.1962)





