Inteligência Artificial e o futuro

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Foto: Reprodução/X

 

Ainda não temos a exata medida da revolução trazida pela Inteligência Artificial (IA). O que se sabe até agora vem de previsões, a maioria repletas de interrogações e de sinais de mau agouro sobre essa nova tecnologia. De fato, o século XXI parece que será moldado pela IA em múltiplos aspectos. Cientistas respeitados como o físico britânico Stephen Hawking alertam para o perigo que a humanidade enfrentará caso a IA venha a adquirir vontade própria aliada a uma competência extrema e sobre humana, capaz, segundo ele, de representar uma ameaça à própria existência humana sobre o planeta.

Em sua obra póstuma “Brief Answers to the Big Questions”, Hawking previu que a aprimoração da IA pode levar a humanidade a ser simplesmente ignorada e mesmo colocada em segundo plano, sendo então descartada como uma espécie superada. O fato é que a IA colocou o homem numa espécie de encruzilhada decisiva entre a salvação e a destruição. A questão aqui é como estabelecer uma espécie de regulação ética e desenvolvimento responsável para a IA, quando se sabe que a espécie humana é guiada por desejos, sendo um deles o desejo pelo poder e pela dominação.

Deste modo, estaríamos numa encruzilhada do tipo dialética, alimentando uma tecnologia que, no futuro, irá simplesmente nos destruir sem remorsos, sem choro nem velas. Talvez estejamos inventando um novo tipo de pólvora ou bomba atômica, que, mais cedo ou mais tarde, irá explodir a todos. Nas últimas quatro décadas, Peter Diamandis, empresário, médico e engenheiro, fundador da X Prize Foudation e da Singularity University, vem tentando entender que tecnologias irão moldar este século em que estamos. Para tanto, fundou a Singularity University orientada para pesquisar e responder a essa questão. Segundo ele, em pouco mais de uma década, o mundo, tal qual o conhecemos hoje, será totalmente irreconhecível. A principal ferramenta responsável por essa mudança será justamente a IA.

Nesse mês de agosto, Peter Diamandis estará presente no Rio Innovation Week (RIW), falando sobre esse tema. Ao contrário de Hawking, Diamandis é um ortimista em relação ao futuro com a ajuda da IA. O que temos em mãos é que a IA, como toda grande revolução tecnológica da história, é ambivalente. Pode ser instrumento de dominação ou de libertação, dependendo de como a humanidade escolher usá-la.

Vejamos algumas das possibilidades concretas e positivas que a IA já começou a trazer e que, bem reguladas e dirigidas por princípios éticos sólidos, podem moldar um futuro promissor: a medicina personalizada e cura de doenças até hoje incuráveis é uma dessas esperanças. A IA já está revolucionando a medicina com diagnósticos precoces mais precisos do que os realizados por médicos humanos, detectando câncer, doenças neurodegenerativas e patologias raras com maior exatidão. Com o avanço de tecnologias como o machine learning, será possível desenvolver terapias personalizadas, criadas para o perfil genético de cada paciente, e prever surtos epidêmicos antes mesmo de se alastrarem. Na educação, em vez de um modelo de ensino industrial, que trata todos os alunos como iguais, a IA permitirá a criação de ambientes educacionais altamente personalizados, que se adaptam ao ritmo, estilo de aprendizagem e interesses de cada estudante. Isso pode levar à inclusão de populações tradicionalmente marginalizadas pela educação formal, como adultos analfabetos, pessoas com deficiência e comunidades remotas. Também, na redução drástica da pobreza, há esperanças. Com a automação de tarefas repetitivas e a otimização de processos, a IA poderá aumentar exponencialmente a produtividade em diversos setores. Se associada a políticas públicas inteligentes, isso pode significar maior acesso a bens, serviços e oportunidades e uma redistribuição mais justa da riqueza produzida, abrindo caminho para a redução da pobreza extrema em muitas regiões do mundo.

Na proteção ao meio ambiente, a IA pode ser utilizada para prever desastres naturais com mais antecedência, otimizar o uso de recursos naturais, monitorar ecossistemas ameaçados e desenvolver novas formas de energia limpa. Algoritmos já estão sendo usados para combater o desmatamento na Amazônia e para analisar os impactos das mudanças climáticas em tempo real. Na governança inteligente a IA poderá tornar a gestão pública mais eficiente, transparente e orientada por dados reais.

A corrupção poderá ser reduzida com sistemas de auditoria automatizados, e o planejamento urbano, saúde pública e segurança poderão ser otimizados com base em análises profundas e imparciais. No entanto, nada disso será alcançado por nossa espécie caso a IA venha a cair em mãos erradas. Para tanto, o alerta de Hawking não deve ser desprezado.

O poder da IA é tão imenso que, em mãos erradas ou sem controle, pode sim representar uma ameaça real. Algoritmos enviesados podem reforçar injustiças; sistemas autônomos de armas já estão sendo testados em zonas de conflito; e há o risco de concentração de poder nas mãos de poucas corporações ou Estados que dominem a IA. Por isso, mais do que discutir se devemos parar ou avançar, o centro da questão está no “como avançar”.

Ética, regulação internacional, educação pública sobre tecnologia e a formação de uma consciência coletiva global são elementos indispensáveis para garantir que a IA seja uma ferramenta de emancipação, e não de escravidão digital. Assim como aconteceu com as conquistas do fogo, da eletricidade e da energia nuclear, a IA é uma ferramenta. Não é boa nem má em si mesma. Tudo dependerá daquilo que faremos com ela. A presença de nomes como Peter Diamandis no Rio Innovation Week é um sinal de que o debate precisa ser ampliado, democratizado e, sobretudo, ancorado na busca por soluções que tenham o ser humano e o planeta como prioridade. A pergunta que fica é: seremos capazes de guiar essa revolução com sabedoria, ou seremos guiados por ela rumo à obsolescência? A resposta, por ora, ainda está em nossas mãos.

 

A frase que foi pronunciada:

“Estude o passado se quiser adivinhar o futuro.”

Confúcio

Foto: reprodução da internet

 

História de Brasília

De qualquer forma é, ainda, a cidade quem paga por tudo isto. O projeto de isenção de imposto de renda para lucros imobiliários, o código tributário, e outras proposições da Câmara. (Publicada em 08.05.1962)

1984 é bem ali

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Imagem: reprodução da internet

 

Observadores da cena internacional acreditam que o mundo caminha, nesta primeira metade do século XXI, para uma espécie de “socialismo de castas”, onde as elites cada vez mais empoderadas vão se eternizando no topo, com toda a espécie de direitos e privilégios, enquanto ao povo, essa histórica porção de ninguém, é  dado como herança e destino um novo tipo de miséria, mais perniciosa e não menos desumana. Tanto a Europa como, no nosso caso, o Brasil assistem essa realidade advinda de um globalismo niilista, que vai, aos poucos, destruindo a democracia clássica em nome de uma falsa igualdade.

Trata-se aqui de reconhecermos uma realidade  poderosa que sintetiza um sentimento crescente de que os valores democráticos clássicos, como liberdade, mérito, mobilidade social, estão sendo lentamente substituídos por um sistema autoritário disfarçado de justiça social. O que vemos aqui é um novo tipo de socialismo, mais adaptado ao nosso século e a um mundo superpopuloso e inquieto. A ideia de socialismo de castas expõe também uma contradição: em vez de eliminar desigualdades, o sistema as congela como deseja o globalismo.

O discurso da igualdade, quando instrumentalizado por elites políticas e econômicas globalizadas, acaba servindo como véu para manter seus privilégios intactos, enquanto impõe ao povo uma “igualdade na miséria”. Não se trata aqui do socialismo clássico, mas de uma versão tecnocrática, centralizadora, niilista — sem valores transcendentes, sem verdade, sem limites éticos, em que tudo é relativo, exceto o poder de quem já o detém. O que está posto aqui projeta para um futuro próximo o que é hoje, no presente, a realidade de países como a Venezuela.

Essa nova elite transnacional, formada por grandes corporações, organismos multilaterais e lideranças políticas, supostamente progressistas, defende uma ordem mundial onde o indivíduo é reduzido á estatística, o Estado nacional é esvaziado, e a cultura local é vista como obstáculo à padronização social e econômica. Isso constitui um niilismo poderoso que vai rompendo paulatinamente com qualquer base moral objetiva: tudo é permitido em nome de uma suposta e ilusória inclusão e progresso. É o progresso não para a melhoria na qualidade de vida da sociedade, mas que a arrasta literalmente para um mundo distópico e já sem esperanças.

Na Europa, o discurso igualitário avançou ao ponto de se tornar um instrumento de controle ideológico. Países como França, Alemanha e Suécia vivem crises internas com o multiculturalismo imposto, a erosão da cultura nacional e a criminalização do pensamento divergente. A promessa de igualdade e integração se transformou em zonas de exclusão social, guetos e insegurança. Além disso, a burocracia da União Europeia, distante da realidade dos povos, impõe regras ambientais, econômicas e culturais que favorecem grandes conglomerados e limitam a autonomia dos cidadãos comuns. Assim, a mobilidade social é engessada e a elite política permanece girando entre os mesmos nomes, partidos e interesses, numa pantomima ensaiada que vai, aos poucos, solapando a vida social, econômica e política como a conhecemos.

No Brasil, essa lógica se manifesta também de forma ainda mais perversa. Políticas públicas mal planejadas, sob o pretexto de “inclusão”, criam dependência estatal em vez de emancipação cidadã. O bolsa família é hoje um verdadeiro labirinto sem saída e que vai aprisionando o cidadão ao Estado. A elite política brasileira, muitas vezes aliada a ONGs internacionais e à grande mídia, perpetua sua influência sob o discurso de “representatividade” e “diversidade”, enquanto entrega a população a um sistema educacional falido, violência urbana crônica e oportunidades restritas. Tristes tempos esses em que o mundo e o homem vão perdendo sua identidade em nome de projetos que não são os seus.

Com essa nova realidade que vai se impondo, a meritocracia passa a ser demonizada como “elitista”, enquanto privilégios de castas burocráticas, como no caso de  magistrados, políticos, altos funcionários seguem intocados. Cria-se, assim, um abismo intransponível: de um lado, uma elite protegida e globalizada; de outro, um povo sufocado, rotulado e manipulado. A destruição da democracia clássica, como a conhecemos, vai sendo posta de lado, como coisa do passado. A democracia clássica se baseava na alternância de poder, na liberdade de expressão, na igualdade perante a lei e no Estado de Direito. Tudo isso está sendo minado por esse globalismo niilista, que substitui o debate aberto por narrativas únicas, a autonomia nacional por tratados internacionais e o cidadão por uma massa homogênea de “clientes do Estado”.

Essa nova ordem se legitima por meio do medo, das pandemias, do clima e do discurso “de ódio” para justificar o controle crescente. O objetivo não é eliminar desigualdades, mas redistribuí-las de forma a manter a elite onde sempre esteve, blindada contra o povo e acima da lei. O mundo não caminha para uma igualdade verdadeira, mas para uma hierarquização disfarçada, onde a elite se apresenta como salvadora enquanto cristaliza seus próprios privilégios. A democracia só sobreviverá onde há liberdade real, e esta depende de pluralismo, responsabilidade individual e soberania. O desafio está lançado: ou resgatamos os fundamentos da civilização ocidental, com suas liberdades e limites, ou assistiremos à consolidação de um novo tipo de despotismo, tecnocrático, globalizado e sorridente, mais parecido com o mundo previsto por George Orwell em “1984”.

A frase que foi pronunciada:

“Você não pode escapar da responsabilidade do amanhã, fugindo dele hoje.”

Abraham Lincoln

Abraham Lincoln. Foto: wikipedia.org

História de Brasília

Como não haverá eleição no Distrito Federal, os próprios líderes se descuidaram do caso, e não procuraram apresentar , por êsse motivo, os nomes dos seus partidos. (Publicada em 08.05.1962)

Guerra e paz

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Presidente Trump. Foto: Casa Branca / Molly Riley

 

Crises, como já apontavam os antigos, abrem oportunidades para a criação de novas soluções e de novos caminhos. Essa situação vale, sobretudo, para aqueles que possuem imaginação e não se deixam guiar por pessimismos. Sun Tzu, autor da celebre “A Arte da Guerra”, já ensinava, no século V a.C., que a guerra é, além de um caminho para a sobrevivência, um meio de conhecer não só a si mesmo, como ao próprio inimigo, derrotando-o sem sequer lutar. Mas antes é preciso saber quando lutar e quando esperar. Sobretudo, é preciso não blefar, desafiando um oponente reconhecidamente superior e mais forte.

Guerras não são jogos de cartas. Há sangue e humilhações. Para um bom estrategista, a maneira mais correta para avaliar os prós e contra de uma guerra é saber como outras nações trataram o mesmo assunto, a fim de evitar o pior. O problema é quando o comandante passa a ignorar os conselhos e o bom senso, deixando-se guiar pelo fígado e, pior, por uma questão que mistura bravatas e crenças políticas. Igualmente danoso é quando um líder resolve colocar sua salvação pessoal e política à frente dos legítimos interesses da nação.

É preciso entender que guerra, do tipo tarifária, pode ser tão mortal como guerras do tipo convencional. É preciso que se entenda ainda que, no nosso caso particular, com a taxação dos produtos brasileiros decretado pelo governo americano, a aceleração da derrocada economia nacional, produzida por essa decisão externa, vem a se juntar à crise econômica gerada por ação interna e exclusiva do próprio governo. Para um país como o nosso, manietado por uma severa crise econômica, resultado de anos de políticas desastrosas, a entrada de um fator externo deveria ser encarado com cuidados redobrados. O mais preocupante, contudo, é saber que, por interesses pessoais e estratégias mal formuladas, o governo brasileiro pensa em colher frutos em forma de votos, opondo-se frontalmente aos Estados Unidos, numa reedição transloucada dos tempos da guerra fria.

Para quem não entende o que está posto nesse momento, soberania e, antes de tudo, fartura de comida no prato, educação de qualidade e segurança pública eficiente, tudo o que não temos e que a cada tempo se mostra mais distante. O governo brasileiro parece ignorar completamente os princípios milenares de prudência e inteligência estratégica. Ao invés de buscar caminhos diplomáticos e negociar a partir de uma leitura realista das correlações de força, tanto econômicas quanto políticas, prefere confrontar os Estados Unidos, como se estivesse em um tabuleiro de bravatas ideológicas, e não em um cenário geopolítico real, de consequências concretas para milhões de brasileiros. A lucidez, que deveria nortear qualquer liderança em tempos de crise, tem sido substituída por uma retórica marcada por ressentimentos históricos e delírios de soberania, que não se sustentam diante da fragilidade econômica brasileira.

O país amarga estagnação, baixo crescimento, desemprego estrutural e perda de competitividade industrial. Em vez de concentrar esforços na reconstrução da economia interna e na ampliação de mercados externos, o governo acena com discursos de enfrentamento, como se isso, por si só, fosse suficiente para garantir prestígio ou votos. Mais grave ainda é o fato de que a crise econômica interna, já instalada por anos de erros sucessivos em políticas públicas, fiscais e de investimento, é agora potencializada por essa confrontação com a maior economia do mundo. O resultado? Uma tempestade perfeita: retração de investimentos, aumento da desconfiança internacional e, inevitavelmente, mais dificuldades para o setor produtivo brasileiro,especialmente o agroexportador, que depende diretamente do acesso a mercados estrangeiros.

A tentativa vã de “colher frutos em forma de votos”, atinge o cerne do problema e mostra um governo perdido em suas alucinações. A manipulação de crises internacionais como instrumento de fortalecimento político interno , algo típico de regimes autoritários ou de governos em desgaste, revela não apenas imprudência, mas também falta de compromisso com o bem-estar nacional. Colocar interesses eleitorais acima da estabilidade econômica é uma forma disfarçada de traição ao país. A guerra tarifária pode ter efeitos tão letais: fábricas fechadas, produtos encalhados, desemprego crescente e carestia nas prateleiras. E, em última instância, ela contribui para o desmonte silencioso da soberania real, que começa com a fome, passa pela desinformação e termina na apatia de uma população que não vê saída. Diante disso, o que se exige de um governo não é orgulho ferido, mas racionalidade estratégica, diálogo com os pares internacionais, como foi feito por vários países e, sobretudo, humildade para reconhecer os próprios limites. A crise pode, sim, abrir oportunidades. No caso do Brasil, em duas frentes: para aqueles que têm imaginação e coragem de governar para um povo ou para os que já tem um plano para confrontar a nação.

 

 

A frase que foi pronunciada:

“Os mercados em rápido crescimento – os BRICS e os Next Eleven – são a chave. O próximo bilhão de consumidores não virá dos EUA ou da Europa Ocidental – eles virão da Ásia, América Latina e África.”

Martin Sorrell

Martin Sorrell. Fotografia: Simon Dawson/Reuters

 

História de Brasília

5Sobre essas de travessia, há uma observação. Se as linhas fossem em diagonal seriam vistas a maior distância. (Publicada em 08.05.1962)

Eis aí a lição

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Charge do Eric Allie

 

É possível ao Estado tornar-se mais forte do que a sociedade e ainda assim conservar a democracia em toda a sua plenitude? Eis, aqui, uma questão que muitos têm feito, na busca de entender o Estado contemporâneo e suas vertentes atuais. De cara, é preciso notar que, nessa nova situação, o governo vive em função do próprio governo e não em função do cidadão.

Miguel Reale (1910-2006) considerava que, no Brasil, o direito civil começou a morrer com o surgimento do direito administrativo, ao regular a dependência das pessoas em função do Estado e, mais modernamente, em função do governo. Essa questão toda atrai para si outra de igual importância para o entendimento da liberdade cidadã: o fenômeno do estatismo. Esse, por sua vez, é cria direta de outro fenômeno que veio para antepor mais dificuldades à liberdade e que, nesse caso, é representado pela burocracia estatal, exercida por indivíduos com laços estreitos com o governo. A burocracia tolhe nacos da liberdade, tornando o cidadão refém ou dependente do Estado e das vontades do governo.

Os estados atuais tornaram-se instituições sofisticadas e complexas, nas quais a liberdade passou a ser um simples detalhe, dependente de uma infinidade de regras que, ao fim e ao cabo, colocam a liberdade no fim de uma fila de exigências. A situação é simples quando se pensa que, quanto maior o Estado, menor é o cidadão, e pequena a sua chance de encontrar a liberdade. A verdade é que a união do Estado com o governo cria um outro elemento, representado por um retorno saudoso e nada saudável do despotismo ilustrado, em que as autoridades se sentem imbuídas da missão de recivilizar a sociedade, tornando-a palatável aos novos tempos.

Por outro ângulo, nesse caso, a liberdade induz os indivíduos a fugirem da dependência. Antigamente se dizia que “quem aluga seu traseiro, não senta onde quer”. A dependência, induzida por políticas do tipo paternalistas, é um dos entraves à liberdade e um indutor do despotismo. A liberdade é o que é, e não pode ser amenizada apenas por conquistas materiais. A liberdade, em si, é um ato de independência. Há casos, porém, nos quais a liberdade é fomentada apenas pelo medo da servidão, e isso, convenhamos, não é liberdade. Não há dúvidas de que essa é uma questão central e profundamente atual: é possível manter a democracia plena quando o Estado se sobrepõe à sociedade, tornando-se mais forte que ela?

Em A Democracia na América, Tocqueville alertava para o risco do que chamou de “despotismo suave”: um Estado que, em vez de oprimir de forma brutal, cuida dos cidadãos como um pai benevolente, mas infantiliza-os ao ponto de retirar-lhes a autonomia. “O soberano estende seus braços sobre a sociedade como uma rede de regras sutis e complicadas… Ele não quebra as vontades, mas as amolece, dobra e dirige; raramente força a agir, mas, constantemente, opõe-se a agir.” Para Friedrich Hayek, em O Caminho da Servidão, o crescimento do Estado intervencionista leva, inevitavelmente, à perda das liberdades individuais. Ele via no planejamento centralizado uma ameaça à ordem espontânea da sociedade. Dizia ele: “Quanto mais o Estado planeja, mais difícil se torna para o indivíduo planejar”.

A crítica de Hayek ao estatismo ecoa na observação de que o cidadão se torna aos poucos refém do próprio Estado. Isaiah Berlin, em sua clássica distinção entre liberdade positiva e liberdade negativa, alertou para o risco de regimes que, em nome de uma liberdade “superior” (positiva), justificam a coação. Essa liberdade positiva, quando apropriada pelo Estado, pode levar ao autoritarismo. Ou seja: “A liberdade para o lobo é a morte para o cordeiro”. Essa frase ilustra como o poder estatal, ao tentar moldar a sociedade, pode sacrificar a liberdade de alguns sob o pretexto de proteger ou educar o coletivo, algo próximo do arcaico despotismo ilustrado.

Benjamin Constant, por sua vez, diferenciava a liberdade dos antigos (participação direta na política) da dos modernos (autonomia individual frente ao Estado). Para ele, “a liberdade é o direito de não ser submetido senão às leis, de não ser preso, nem detido, nem morto, nem maltratado de nenhum modo pela vontade arbitrária de um ou vários indivíduos”. Essa ideia reforça o ponto de que a liberdade é um valor em si, não uma concessão do Estado nem um subproduto do bem-estar material.

Hannah Arendt, em Origens do totalitarismo, lembra que a perda da liberdade começa quando o cidadão troca sua autonomia por segurança ou conforto, e que a burocracia é uma das formas mais sutis e eficientes de dominação. “A burocracia é o governo de ninguém, e, portanto, talvez o mais tirânico de todos.” A verdadeira liberdade, como ato de independência e não como simples ausência de grilhões, não pode ser administrada, muito menos concedida, por políticas paternalistas ou por um Estado tutor. A democracia plena exige um Estado limitado, transparente e controlado pela sociedade civil, e não o contrário. Quando o Estado cresce demais e passa a ditar os termos da liberdade, resta ao cidadão lembrar a lição de Étienne de La Boétie, em seu Discurso da Servidão Voluntária: “Resolvi apenas fazer-vos compreender que, para que deixeis de ser escravos, basta que não queirais mais sê-lo.”.

 

 

A frase que foi pronunciada:
“O país estava em perigo; ele estava colocando em risco seus direitos tradicionais de liberdade e independência ao ousar exercê-los.”
Joseph Heller, no livro Catch-22

Escritor americano Joseph Heller, 1986. Foto: Oliver Morris — Arquivo Hulton/Getty Images

 

História de Brasília
A 22 de novembro do ano passado, o sr. Raniere Mazzilli promulgou a resolução 63, que altera o regimento interno da Câmara dos Deputados em diversas partes, e criou, nessa oportunidade, a Comissão Permanente do Distrito Federal. (Publicada em 8/5/1962)

O bem-estar da população

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Charge do JCaesar: 14 de julho (JCaesar/VEJA)

 

Sendo o único animal que se move por interesses, o homem é, por conseguinte, um ser negociador. A política é, em si, a arte de negociar acordos, estabelecendo pontes. O impasse enfrentado, agora, pelo Brasil com a taxação imposta pelos americanos aos produtos de nosso país, é a prova inequívoca de que negociar é tão importante quanto respirar. É, nesse ponto, quando a maré baixa, que vemos quem de fato estava nadando nu.

Fosse colocado como pré-requisito aos candidatos ao governo o notório saber nas artes de negociar, em todas as suas vertentes, quer seja na política, nos tratados econômicos, nos mercantis poucos ou quase nenhum de nossos candidatos às eleições atenderiam essa exigência. O fato é que o bem-estar da população vem do direcionamento correto nas negociações. No caso do Estado, as negociações são feitas para atender as necessidades reais de sua população, e não para as pretensões dos governos. Não por outra razão, os países que mais se destacam na qualidade de vida dos seus cidadãos são, justamente, aqueles que têm sob seu comando pessoas dotadas da habilidade da negociação. Países que não têm em seus governos dirigentes que saibam negociar, ou nada entendem desse mister, são justamente aqueles em que as populações são as mais atingidas por crises cíclicas e profundas.

Negociar, antes de ser uma ciência humana, é uma arte delicada, em que é possível encontrar o ponto de equilíbrio entre interesses diversos e diferentes. Só a boa negociação torna o negócio rentável, embora se saiba que, na verdadeira negociação, todos acabam ganhando. O que fez do Itamaraty o que ele era nas relações internacionais foi, justamente, essa capacidade que os representantes do Brasil tinham de bem negociar. Hoje, essa fama ficou no passado, substituída por variantes outras, como conceitos moldados em argamassa, o que não propicia riqueza e, sim, dependência.

À luz de fatos concretos recentes, divulgados pela imprensa econômica e por agências de comércio internacional, é notório que, nos últimos meses, os Estados Unidos anunciaram, oficialmente, novas tarifas sobre produtos importados do Brasil, com destaque para o aço e o alumínio, setores historicamente sensíveis. A justificativa americana, como de praxe, é de “segurança nacional e protecionismo econômico”, mas há claros elementos geopolíticos e de pressão comercial em jogo. Em alguns casos, o Brasil foi equiparado a países como China e Rússia, no que diz respeito a barreiras tarifárias, o que é um indicativo preocupante de perda de prestígio diplomático.

Segundo dados da ComexStat e do Ministério da Indústria e Comércio, em 2024, o Brasil exportou mais de US$ 4 bilhões em produtos metálicos aos EUA. Com as novas taxações, parte significativa desse comércio se tornará inviável, o que pode levar à perda de milhares de empregos na cadeia industrial brasileira e à retração em polos siderúrgicos importantes, como Minas Gerais e Espírito Santo. Enquanto alguns países, como México, Canadá e Coreia do Sul, conseguiram renegociar, ou pelo menos adiar a aplicação de tarifas unilaterais por parte dos EUA, o Brasil tem se mostrado desinteressado em buscar soluções diplomáticas reais. O Ministério das Relações Exteriores emitiu apenas notas protocolares, e não há registros de ações contundentes de pressão junto à Organização Mundial do Comércio (OMC) ou tentativas de construir coalizões diplomáticas multilaterais, como seria esperado em uma situação com tamanho impacto.

A condução da política externa brasileira tem sido reiteradamente eivada de desprezo. Isso transforma negociações comerciais em palco de confronto simbólico, e não em arenas de construção de consenso que dê segurança à população e aos investidores. Em vez de usar as instituições multilaterais, a diplomacia técnica e o pragmatismo, o Brasil tem optado por respostas retóricas e, até agora, ineficazes. As consequências para a população brasileira serão severas.

A médio e longo prazo, os impactos de uma diplomacia ineficiente recaem diretamente sobre a sociedade brasileira, na forma de desemprego em setores exportadores sensíveis; aumento da informalidade, especialmente, em regiões industriais; inflação decorrente da instabilidade cambial e perda de competitividade; isolamento comercial, dificultando a entrada do Brasil em cadeias globais de valor; além de uma diminuição de investimentos estrangeiros diretos, dado o risco percebido pelos investidores sobre a previsibilidade política e econômica do país.

Estudo recente da Confederação Nacional da Indústria (CNI) estima que o Brasil perde até R$ 40 bilhões ao ano por não integrar acordos comerciais relevantes com países desenvolvidos, muitos dos quais são parceiros históricos dos EUA. Negociar nesse mundo globalizado é governar. Resta saber que interesses o atual governo tem para tirar o Brasil da roda. O país enfrenta o mundo com discursos, enquanto os demais países negociam com cláusulas, garantias, acordos e assinaturas.

Negociar não é sinal de fraqueza, é expressão de inteligência estratégica. O Itamaraty já foi referência global em diplomacia técnica, tendo desempenhado papel central em fóruns como a Rodada de Doha, da Organização Mundial do Comércio (OMC) ou nas negociações do Acordo de Paris. Hoje, essa herança foi desperdiçada. Se quisermos garantir prosperidade interna e relevância internacional, é urgente resgatar a arte da boa negociação, entendendo que, em um mundo interdependente, a soberania real é exercida com inteligência e diálogo, e não com trincheiras ideológicas e outras opções nada práticas. A questão é: há interesse em garantir a prosperidade do povo desta nação?

 

A frase que foi pronunciada:
“A ciência é inerentemente antiautoritária tal como a democracia. Ao contrário do que por vezes se julga, em ciência não existem autoridades, mas sim especialistas, pois apenas à realidade se reconhece autoridade para escolher entre hipóteses rivais.”
Timothy Ferris

Timothy Ferriss. Foto: wikipedia.org

 

História de Brasília
Um dos graves problemas do ex-Distrito Federal é o do trânsito. A cápsula que conduziu Glen Jr. Ao kosmos levou, do Galeão para a Cinelândia, um terço do tempo que gastou para uma volta em tôrno da Terra. (Publicada em 6/5/1962)

Universidade

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Foto: noticias.unb.br

 

Ainda não será para amanhã ou para futuro próximo que assistiremos nossas universidades públicas aceitarem em paz o pluralismo de pensamento. Foram décadas de esforço para uma convergência de opinião. A diversidade de ideias e, sobretudo, o respeito pelo pensamento do opositor ainda são tabus dentro de nossas instituições de ensino superior, onde parece imperar o dogmatismo e a estatização do pensar único e uniforme.

A uniformidade de debates e discussões vai contra o próprio sentido de universalidade do saber. É como dizem: quem acerta no centro do alvo, perde todo o entorno. É fato reconhecido que foram os centros de saber, onde havia a aceitação de uma miríade de ideias, que mais a ciência encontrou solo fértil para se desenvolver e dar frutos. Diversos são os vídeos mostrando alunos contrários ao pensamento único reinante, no campus, serem hostilizados e agredidos. Mesmo a bandeira nacional ou o verde e amarelo são estigmatizados dentro dessas instituições. Aqueles que ousam abraçar os símbolos nacionais, são logo perseguidos e ameaçados com violência.

A questão  é saber onde todo esse ódio ao diferente irá conduzir nossos pensadores. Em outros países esse fenômeno de intolerância também ocorre. A uniformização do pensamento nas universidades é um fenômeno extremamente prejudicial para o avanço do conhecimento e da ciência. A própria origem do termo “universidade” remete ao conceito de universalidade, isto é, um espaço onde diferentes ideias, perspectivas e saberes coexistem e dialogam para promover o desenvolvimento intelectual e social. Quando se impõe um pensamento único, o ambiente acadêmico perde sua vocação natural de ser um espaço plural, crítico e aberto à inovação.

Ainda não está totalmente aceito entre nós que a ciência e o saber evoluem justamente a partir da diversidade de ideias e da contestação de paradigmas. Grandes revoluções científicas ocorreram porque pesquisadores ousaram desafiar o senso comum de sua época, como Galileu, Darwin ou Einstein, que enfrentaram fortes resistências. Se o ambiente acadêmico não favorece o debate e o contraditório, corre-se o risco de estagnar e reproduzir apenas dogmas ideológicos, transformando o espaço de estudo em uma espécie de “igreja laica”, onde se cultua apenas uma narrativa oficial.

A hostilidade contra o pensamento divergente, seja de alunos, professores ou pesquisadores, vai contra os princípios democráticos e científicos. A perseguição a quem carrega símbolos nacionais, como relatado em alguns episódios, é um sintoma grave de intolerância e sectarismo. Quando o ambiente universitário passa a ser dominado por grupos que atuam como “guardiões da ideologia”, o espaço crítico se reduz e a livre investigação essencial para o progresso humano se torna inviável.

Em termos internacionais, o pluralismo de ideias é visto como um dos fatores determinantes para que universidades alcancem posições de destaque em rankings globais. As instituições mais respeitadas no mundo como Harvard, Oxford ou MIT valorizam o debate, o pensamento crítico e a diversidade de pontos de vista, justamente por entenderem que o progresso acadêmico e científico nasce do confronto de ideias, e não de sua uniformização.

No Brasil, a falta de pluralidade ideológica nas universidades públicas tem contribuído para a queda na qualidade da produção científica e na inovação tecnológica, resultando em instituições menos competitivas globalmente. É preciso resgatar o espírito de diálogo e tolerância, pois apenas um ambiente verdadeiramente plural será capaz de formar cidadãos críticos, pesquisadores criativos e soluções para os desafios complexos da sociedade contemporânea. Democracia e liberdade de pensamento andam de mãos dadas, e é justamente em ambientes onde existe pluralidade de ideias, livre debate e respeito ao contraditório que a ciência encontra terreno fértil para inovar e prosperar.

Nos séculos XIX e XX, por exemplo, nações como os Estados Unidos, o Reino Unido, a França e a Alemanha, todas com instituições democráticas relativamente sólidas em determinados períodos tornaram-se berços de descobertas científicas e avanços tecnológicos que mudaram o mundo: da eletricidade ao avião, do antibiótico ao computador. Isso porque a democracia não apenas protege a liberdade de expressão, como também estimula o pensamento crítico, a pesquisa independente e a meritocracia intelectual. Em outros regimes, a ciência costuma ser instrumentalizada para servir a interesses ideológicos ou militares. Um exemplo clássico é a perseguição a cientistas e intelectuais na União Soviética sob Stalin, quando teorias científicas que não se alinhavam à ideologia do regime — como a genética mendeliana — foram proibidas, causando um atraso científico significativo. Situação semelhante ocorreu na Alemanha nazista, quando pesquisas foram filtradas sob critérios raciais e políticos, destruindo a liberdade acadêmica. Já em democracias abertas, a diversidade de ideias e o financiamento competitivo à pesquisa permitiram avanços de impacto global. Basta observar como o projeto do genoma humano, a internet e as vacinas modernas surgiram de contextos democráticos, nos quais universidades e centros de pesquisa podiam trabalhar de forma autônoma e cooperativa.

Outro ponto crucial é que, em países democráticos, a ciência não fica restrita a uma elite ou a um aparato estatal, mas beneficia diretamente a sociedade. O acesso a novas tecnologias, medicamentos, fontes de energia e métodos educacionais se dá de forma mais ampla e acelerada. A Revolução Verde, que ajudou a combater a fome em várias partes do mundo, e o avanço da tecnologia digital, que hoje conecta bilhões de pessoas, foram frutos de ecossistemas democráticos. Para que o Brasil possa competir globalmente, é urgente resgatar esse espírito democrático dentro das universidades, onde toda ideia possa ser debatida e testada sem medo.

A frase que foi pronunciada:

“A ciência é inerentemente antiautoritária tal como a democracia. Ao contrário do que por vezes se julga, em ciência não existem autoridades, mas sim especialistas, pois apenas à realidade se reconhece autoridade para escolher entre hipóteses rivais.”

Timothy Ferriss

Timothy Ferriss. Foto: wikipedia.org

 

História de Brasília

Um dos graves problemas do ex-Distrito Federal é o do trânsito. A capsula que conduziu Glen Jr. Ao kosmos levou, do Galeão para a Cinelândia, um terço do tempo que gastou para uma volta em tôrno da Terra.

De cabeça para baixo

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Foto: Reprodução/X/@MarcioPochmann

 

Dizem, com propriedade, que a arte imita a vida. No caso da arte da cartografia, surgida por volta do ano 2.500 a.C. com os Sumérios e aperfeiçoada nas escolas de Alexandria e Atenas, essa arte foi talvez a mais importante desenvolvida pelo gênio humano para entender o mundo à volta, tornando possível sua exploração com mais segurança e objetivo.

Hoje tornou-se comum aceitar o fato de que a cartografia serve também para ilustrar não só a realidade física e topográfica do lugar, mas também sua realidade social, econômica, histórica e cultural, portanto trata-se de um campo complexo em constantes mudanças e que exige elaborada e rigorosa investigação científica.

Trata-se aqui de um retrato fiel ou fotografia do mundo como ele é, e não como querem alguns, para quem o mundo deve ser retratado como desejam governos e conceitos de plantão. No caso daqueles países virados de cabeça para baixo, não por ação da inversão dos polos magnéticos, mas pela inversão de valores, a cartografia pode servir também para tentar conferir uma nova e fantasiosa realidade bem ao gosto dos novos mandatários, para os quais a realidade é o que eles querem que seja. Deste ponto, chegamos ao Mapa do Brasil e do globo virados de cabeça para baixo e apresentados ao público pelo presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Marcio Pochmann, e a ex-presidente Dilma Rousseff.

Como resultado dessa empreitada geográfica, o Brasil ficou situado no centro do mundo, como o hemisfério Sul indo parar no topo. Para seu idealizador, a novidade visava ressaltar a atual liderança de nosso país em fóruns como os Brics e a COP 30 nesse ano. É tal da importância crescente do chamado Sul Global, que a novilíngua na atualidade significa destruir a hegemonia do dólar e dos Estados Unidos, substituído agora por outros players como a Rússia, China e outros parceiros dessa empreitada ideológica.

Para um país como o nosso, que está sendo virado pelo avesso, normalizando absurdos e indo de encontro ao que hoje é Cuba, Venezuela, Nicarágua e outros países do nosso continente, a reviravolta geográfica faz todo o sentido. Num país virado e cabeça para baixo, o povo é triste, as perspectivas são nulas e fazer oposição é risco de vida. Nada mais natural então do que apresentar o Brasil de cabeça para baixo.

Pochmann, com sua inteligência aguçada conseguiu o que muitos cartunistas nem pensavam: ilustrar um país na sua condição real de momento. O episódio do “mapa de cabeça para baixo” é um símbolo perfeito de uma era em que a percepção da realidade é disputada como nunca. A cartografia, que sempre foi uma ferramenta objetiva para representar o mundo, agora é usada como palco de convicções particulares e políticas. A inversão do mapa é um gesto que vai muito além do design gráfico: ele traduz uma tentativa de reescrever o papel do país no tabuleiro global, ainda que de forma simbólica. Ao ser apresentada como um ato de afirmação política, ela escancara uma tendência: a de usar símbolos e discursos para criar uma sensação de grandeza que não necessariamente corresponde à realidade socioeconômica do país.

Enquanto se fala em “liderança global” e na força do chamado “Sul Global”, o Brasil enfrenta algumas crises internas na área econômica, de segurança e de relações internacionais. A cartografia, nesse contexto, vira metáfora: ao colocar o Brasil no “alto do mapa”, tenta-se transmitir uma ideia de protagonismo que o cotidiano do cidadão comum não sente. Essa crítica faz sentido ao lembrar que, em um país onde valores estão sendo “invertidos”, no sentido de normalizar o absurdo, ver o mapa de cabeça para baixo soa como uma imagem fiel de um momento de distorções.

Talvez, o maior mérito dessa polêmica seja justamente o de escancarar, por meio de um símbolo simples, o quanto a realidade está sendo “desenhada” de acordo com certas conveniências. O Brasil, ao que parece, não está apenas no centro do mapa, mas no centro de uma inversão de valores, normalizando absurdos em suas tentativas de reescrever nossa história com tintas carregadas de tons cinzentos e vermelhos. Como já diziam alguns seres maléficos, a propaganda é a arte de fazer com que as pessoas esqueçam a realidade, acreditando numa mentira do tamanho do mundo, tornado palatável a revolução que os leve, sem protestos, a um governo autocrático capaz de enganar a tantos com tão pouco.

 

A frase que foi pronunciada:

“Não devo a ninguém minhas eleições, a não ser ao povo desse país”.

Lula em discurso ontem no Vale do Jequitinhonha

História de Brasília

O comércio de Brasília está atormentado com o numero de publicações clandestinas que vem circulando nesta capital. Como não poderia deixar de ser, a imprensa marrom está nestes casos, extorquinto dinheiro e impondo-se através de chantagens. (Publicado em 06.05.1962)

Mundo fake

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Arquivo pessoal: imagem gerada por IA

 

Quão fake e fantasiosos seriam os serviços e produtos oferecidos ao público em geral, sobretudo aqueles que são colocados à venda para uma pequena minoria de pessoas abastadas, para as quais o dinheiro não é problema. É então que a busca por status e por produtos e serviços exclusivos levam esses consumidores privilegiados a se tornarem presas fáceis nas mãos de empresas e empresários gananciosos, que, literalmente, seguem vendendo e ofertando gatos por lebres.

Embalado em finos adereços e dispostos pretensiosamente em cenários chiques, o que não passaria por ser um produto comum e barato, é colocado nessas verdadeiras ratoeiras apenas para fisgar os incautos. Para tanto, mudam o nome do produto, colocando outro mais palatável e, se possível, carregado de francesismo. Dessa forma, o elementar arroz misturado com ovo, prato predileto dos mais pobres dos brasileiros, passa a ser servido com nome exótico de “riz mèlangé avec des oeufs dur ou riz d’ouefs”.

O que os botecos venderiam por R$ 10,00 aos transeuntes, nesse cenário chique, não sairia por menos de R$ 150,00, sem os serviços. A mesma calça jeans, que nas lojas populares não custam mais do que R$ 110,00, são vendidos em lojas de endereços renomados, pela bagatela de R$ 900,00, bastando ao espertalhão mudar apenas a etiqueta da marca. Assim, esse mundo fantasioso e fake, bancado por quem se ilude com o luxo, sobrevive e prospera graças à esperteza de alguns.

Nada é o que parece e o que parece não é nada, apenas uma fantasia desse mundo cada vez mais fake. O que poderia ser um retrato ácido e realista de uma engrenagem que movimenta bilhões, sob o pretexto do “exclusivo”, não passa de enganação. Uma enganação lucrativa e aparentemente dentro da lei. A economia do supérfluo sofisticado gira em torno de uma lógica perversa: não é o valor intrínseco do produto que importa, mas a narrativa construída ao seu redor. Quanto mais rara, inusitada ou instagramável for essa narrativa, maior o valor percebido pelo consumidor de luxo — mesmo que, no fundo, o que esteja sendo comprado seja apenas um produto ordinário com embalagem de fantasia.

A elite consumista, em busca constante de distinção social, torna-se presa fácil dessa armadilha. Muitas vezes, o desejo não é possuir algo de qualidade superior, mas algo que os outros não tenham. Essa lógica de exclusividade empurra consumidores para escolhas irracionais, em que o valor simbólico se sobrepõe ao valor real. Nessa dinâmica, um café coado com grãos comuns pode se transformar em “infusão artesanal de arábica de origem controlada”, custando dez vezes mais. Um prato simples de picadinho de carne servido em pratos de louça importada e regado a discursos vazios de sofisticação com gosto de molho de pacotinho vale uma cesta básica e meia. É o que o sociólogo francês Pierre Bourdieu chamou de distinção: um mecanismo de diferenciação cultural que serve para demarcar classes sociais. Marcas e empresários se aproveitam disso e atuam como verdadeiros ilusionistas, substituem o conteúdo pela embalagem, o sabor pela aparência, a utilidade pela ostentação.

Mais grave ainda é quando essa lógica ultrapassa o campo dos produtos e entra nos serviços: clínicas estéticas que prometem o impossível, experiências sensoriais supostamente únicas, pacotes de viagens absurdamente caros que oferecem pouco, além de um nome de impacto. Tudo é vendido como “inesquecível”, “personalizado”, “exclusivo”, mas, na prática, é apenas mais do mesmo, embrulhado em papel de presente luxuoso.

Na verdade, o problema não está só na astúcia dos vendedores, mas na credulidade dos compradores, que participam desse jogo voluntariamente e “se achando”. Essa cumplicidade silenciosa alimenta um mercado que vive de aparência, status e desejo, não de substância. Em última análise, esse mundo fake é sustentado por um teatro de vaidades. Um teatro caro, vazio e muitas vezes patético, onde a autenticidade foi substituída por etiquetas, e o bom senso por cifrões.

O luxo verdadeiro — aquele que representa excelência, história, técnica e arte é cada vez mais raro. No lugar dele, proliferam vitrines falsas, promessas ocas e produtos que são, na essência, meros “arroz com ovo” disfarçados de caviar. “Eu, minha alma, enviei para o espaço sem fim para um traço aprender nos destinos do além, minha alma devagar foi retornando a mim e me disse: eu sou o céu e o inferno também.” Registra Omar Khayyam, no livro Rubaiyat. De fato, os homens são o céu e o inferno de si mesmos, e tudo ao mesmo tempo, luxo e lixo, tudo num mesmo produto.

 

 

A frase que foi pronunciada:

“O valor do homem é determinado, em primeira linha, pelo grau e pelo sentido em que se libertou do seu ego.”

Albert Einstein

Albert Einsten. Foto: Arthur Sasse/Nate D Sanders Auctions/Reprodução

 

História de Brasília:

O nome empregado na maioria dos golpes foi do servidor Barros de Carvalho, e os chantagistas conheciam tanto seus hábitos, que falando pelo telefone para sua residência, recomendavam com insistência para que quando fizessem a mala não esquecessem dos remédios. (Publicada em 06.05.1962)

Marina clama no deserto

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Estrada construída para a COP30 em Belém que vai desmatar a Amazônia – Foto: Reprodução Blog BBC News

Com a aprovação pelo Congresso do projeto de lei que flexibiliza o licenciamento ambiental, a delicada questão do meio ambiente no Brasil ganha novos e perigosos elementos, podendo colocar o Brasil, mais uma vez, sob os olhares do mundo civilizado e, com isso, gerar mais empecilhos à aceitação dos produtos nacionais nos mercados externos, sobretudo, naqueles países da Europa que exigem certificado de que esses alimentos são produzidos sem ameaças ao ecossistema.

Para a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, a aprovação dessa flexibilização “decepou a legislação sobre o assunto no Brasil”. Para ela, essas novas permissões não vieram para aperfeiçoar as leis que levem a ganhos ambientais. Os deputados simplesmente ignoraram as propostas de alterações feitas pela ministra, preferindo atender a bancadas dos ruralistas e a interesses do próprio governo, como são os casos dos ministros da Agricultura, Portos e Aeroportos e o ministro dos Transportes. O próprio governo preferiu não apresentar defesa dos pontos de vista da sua ministra, esquivando-se de uma posição em favor da defesa do meio ambiente.

Marina, como em outras oportunidades, ficou sem apoio do próprio governo que faz parte. A ministra é hoje, literalmente, uma voz solitária a clamar no deserto contra o avanço de um progresso que não olha ao redor, passando por cima de florestas e animais. Mas, devido à grande celeuma causada, é possível que essa aprovação vá também ser encaminhada à apreciação do Supremo Tribunal Federal. Há pouco menos de quatro meses para a realização da COP30, conferência de clima da ONU em Belém, essa flexibilização ou liberação geral surge quase como um deboche. Meses atrás, a ministra já se viu abandonada na questão da exploração de petróleo na Margem Equatorial, onde os riscos ambientais são imensos. A liberação de projetos estratégicos, como define o governo, parece ser o caminho escolhido pelos políticos em detrimento da defesa do nosso bioma.

Os sinais de desprestígio de Marina Silva não são novos, mas se tornaram mais evidentes nas últimas semanas. No episódio da flexibilização do licenciamento, ela foi completamente ignorada pelo Congresso e deixada de lado pelo próprio Palácio do Planalto. Nenhum ministro relevante, tampouco o presidente, saiu em sua defesa. Pelo contrário, setores do governo, como os ministérios da Agricultura (Carlos Fávaro), Transportes (Renan Filho) e Portos e Aeroportos (Silvio Costa Filho), atuaram ativamente em prol da aprovação do projeto, revelando uma escolha clara: entre desenvolvimento imediato e sustentabilidade, optou-se pelo primeiro. Esse desprezo já havia se mostrado antes, como no caso da tentativa de exploração de petróleo na Margem Equatorial. Mesmo diante de pareceres técnicos e científicos apontando os enormes riscos ecológicos de perfuração naquela área sensível, a pressão política e econômica falou mais alto. Marina, mais uma vez, ficou sozinha, como se sua presença no governo servisse mais a fins simbólicos do que operacionais. É o que se poderia chamar de “ambientalismo decorativo”.

O paradoxo é evidente: faltando menos de quatro meses para a realização da COP30, em Belém do Pará, o governo brasileiro se vê promovendo medidas que esvaziam completamente seu discurso ambiental no plano internacional. A conferência é uma das maiores vitrines diplomáticas do país, uma chance de mostrar liderança e comprometimento com as metas de descarbonização, conservação de biomas e justiça climática. No entanto, a liberação desmedida de obras classificadas como “estratégicas”, sem o devido rigor ambiental, enfraquece qualquer tentativa de credibilidade externa. Para países europeus que exigem rastreabilidade e responsabilidade ecológica na cadeia produtiva de alimentos como Alemanha, França e Holanda, a nova legislação brasileira é um sinal vermelho. Já há movimentos no Parlamento Europeu que discutem barreiras técnicas para produtos oriundos de países que desrespeitam princípios básicos de sustentabilidade. O Brasil, que já teve sua carne e soja embargadas por questões ambientais, pode voltar à lista de vilões do clima se continuar nessa direção.

A entrada da China como ator dominante na exploração mineral brasileira é outro ponto que expõe a fraqueza do Estado na defesa do meio ambiente. Diversas empresas chinesas, principalmente ligadas ao setor de mineração, têm intensificado sua atuação na Amazônia e no Cerrado, abrindo crateras e deixando rastros de destruição. Em estados como Pará, Maranhão e Mato Grosso, comunidades indígenas e quilombolas denunciam a atuação predatória de mineradoras que, com aval ou omissão do Estado brasileiro, atuam sem qualquer compromisso com a regeneração ambiental ou o bem-estar social. A busca por lítio, nióbio, ouro e terras raras, transforma o subsolo brasileiro em um novo “eldorado” para interesses estrangeiros, reproduzindo uma lógica colonial: extrai-se tudo, o lucro vai embora, e o que resta é a contaminação de rios, aumento de conflitos sociais e destruição irreversível da biodiversidade. Em nome do crescimento e da “soberania energética”, entrega-se o território ao saque legalizado.

O caso Marina Silva simboliza a crise da razão ambiental no Brasil. Enquanto os olhos internacionais voltam-se para nós com desconfiança, o governo se mostra incapaz de articular uma política ambiental coesa. Preferiu calar sua ministra em vez de ouvir a voz da prudência. Preferiu agradar aliados do agronegócio, do petróleo e da mineração a buscar equilíbrio entre progresso e preservação. Se o Brasil seguir nesse caminho, corre o risco de chegar à COP30 não como anfitrião de uma agenda verde, mas como réu no tribunal da história ambiental mundial. E Marina, por mais combativa que seja, não poderá evitar isso sozinha.

 

 

A frase que foi pronunciada:

“O patrimônio natural é a base da nossa economia.”

Marina Silva

Foto: Rogério Cassimiro/ Divulgação

 

História de Brasília

A indústria nacional deve ter mais zelo na apresentação de suas publicações. No catálogo da Volkwagen brasileira há um clichê de cabeça para baixo. (Publicada em 06.05.1962)

Via sem retorno próximo

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Foto: ogritonews.com

Há episódios que condensam, num único gesto, o cansaço de uma população inteira. O caso do proprietário do restaurante Dom Léon na 112 sul, que reagiu a uma tentativa de invasão e matou o ladrão que avançava contra seu lar e sua esposa, tornou-se, em poucas horas, mais do que um crime noticiado: virou um símbolo. Esse e tantos outros mais atuais são símbolos de um esgotamento moral que atravessa todas as classes sociais, da indignação que já não se limita aos grupos de mensagens, mas transborda para as ruas digitais, onde milhares se manifestam em apoio ao comerciante que ousou fazer aquilo que o Estado, por inércia, recusa-se a fazer: defender. A polícia prende, o juiz solta.

Entre fotos de pratos e relatos da clientela, as redes sociais do Dom Léon transformaram-se num fórum improvisado, onde se deposita não apenas solidariedade, mas também uma acusação difusa contra os que terceirizaram a segurança pública ao improviso. O contraste é grotesco: quem trabalha, cria empregos e mantém a dignidade de portas abertas vê-se algemado e levado à delegacia, enquanto quem rouba, quando sobrevive, costuma voltar brevemente às ruas para cometer novos crimes, digno de piedade, com apoio de psicólogo do Estado e advogado pago pelo erário. A fiança de oitocentos reais paga pelo dono do restaurante não é só o preço burocrático da liberdade: é o recibo de uma inversão de valores que trata o trabalhador armado de coragem como se fosse o delinquente e o delinquente como se fosse o verdadeiro injustiçado. Não faltam oportunidades para melhorar de vida. Mas a lacuna educacional dificulta cada passo. Mais uma vez, apesar dos impostos, não há investimentos do capital humano.

Em casos onde os bandidos são surpreendidos, talvez o que mais venha a revoltar tantos brasileiros não seja apenas o crime em si, mas o que ele representa: a completa naturalização de uma rotina de medo. Não se trata mais de casos pontuais ou de violência episódica. Trata-se de um estado de sítio informal, uma resignação coletiva em que cada família se torna refém da estatística, sabendo que poderá ser a próxima. O restaurante, que deveria ser um lugar de convívio, sustento e partilha, converte-se em trincheira improvisada, cada comerciante num vigia relutante que paga impostos a um poder público que só aparece para multar, taxar ou condenar.

O episódio não se explica apenas pelo contexto imediato, mas por um processo mais longo e corrosivo. Durante anos, parte das autoridades preferiu minimizar a criminalidade, tratando o problema como uma “questão social”, passível de retórica e seminários. Enquanto isso, a população comum coleciona boletins de ocorrência, câmeras de vigilância, grades nas janelas e medo noturno. No fundo, a comoção que se viu não é apenas pelo dono do restaurante, mas pelo pressentimento de que todos poderíamos estar em seu lugar. A indignação, nesse sentido, não é apenas moral, mas existencial: o brasileiro médio percebeu que sua vida vale menos que o discurso oficial. São muitos os brasileiros que saem de casa para o trabalho sempre com a sensação que talvez não voltem.

São crimes em todo o DF onde a reação popular é imediata e quase unânime. Uma espécie de plebiscito informal: milhares de comentários nas redes sociais, do cidadão anônimo ao pequeno empresário, dizendo que não suportam mais o constrangimento de pedir licença para existir. O caso do Dom Léon deixa explícito que a sociedade civil tão difamada por quem insiste em vê-la como “massa ignorante” ainda conserva algo que o Estado perdeu: senso de justiça.

O episódio do Dom Léon não deveria ser tratado como exceção, mas como sintoma. Um sintoma de que chegamos ao ponto em que a paciência do cidadão comum, aquele que trabalha e paga todas as contas, esgotou-se. O apoio quase unânime que se viu é mais do que solidariedade. É um recado, um basta coletivo ao desamparo. É o aviso de que o povo cansou de ter vergonha de viver, de ter medo de existir.

Chama atenção que, entre as milhares de manifestações de solidariedade, muitos brasilienses tenham encontrado uma forma simples de se posicionar: prometem frequentar o Dom Léon, consumir seus pratos e manter acesa a chama que, por ora, o Estado parece empenhado em apagar. A clientela diz, em uníssono, que há gestos que transcendem o comércio e que ocupar uma mesa de restaurante pode se converter, silenciosamente, em um ato de desagravo. Cada visita planejada carrega algo maior do que o simples apreço pela gastronomia local: carrega o reconhecimento de que quem protege seu lar merece, ao menos, o benefício da dúvida — e, se possível, o calor discreto de uma casa cheia.

Tem havido algo de reconfortante nessa mobilização pacífica, nesse desejo quase instintivo de retribuir coragem com presença, dignidade com afeto econômico. Entre as linhas de cada comentário de apoio, há uma torcida muda para que o Dom Léon prospere, não apenas como restaurante, mas como lembrança viva de que a sociedade civil, por mais exausta que esteja, ainda sabe distinguir o justo do arbitrário. Se a omissão virou rotina e a covardia se fantasiou de protocolo, resta ao cidadão comum essa forma modesta de resistência: sentar-se à mesa, consumir com respeito e, sem alarde, afirmar que não desistimos por completo uns dos outros.

 

 

A frase que foi pronunciada:

Poder e violência são opostos; onde um reina absoluto, o outro está ausente. “A violência surge onde o poder está em perigo, mas, deixada à própria sorte, termina com o seu desaparecimento.”

Hannah Arendt

Hannah Arendt. Foto: brasil.elpais.com

 

História de Brasília:

O nome empregado na maioria dos golpes foi do servidor Barros de Carvalho, e os chantagistas conheciam tanto seus hábitos, que falando pelo telefone para sua residência, recomendavam com insistência para que quando fizessem a mala não esquecessem dos remédios. (Publicada em 06.05.1962)