Senhores do caos

Publicado em ÍNTEGRA

VISTO, LIDO E OUVIDO, criada por Ari Cunha (In memoriam)

Desde 1960, com Circe Cunha e Mamfil – Manoel de Andrade

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Foto: agenciabrasilia.df.gov

 

          Não passa um dia sequer sem que as manchetes dos noticiários locais tragam, em letras garrafais, notícias sobre a escalada da criminalidade e da violência na capital do país. Foi-se o tempo em que Brasília era uma cidade pacata, como muitas no interior do país, onde as ocorrências policiais, com raras exceções, eram fatos pitorescos. Esse tempo, perdido no longo corredor da memória, é ainda lembrado por muitos que conheceram a cidade nos seus primeiros anos de existência.

        Os brasilienses observavam o Brasil à distância. A violência era então um problema que parecia afligir apenas outros estados, há centenas de quilômetros. No Plano Piloto, que naquela época era a principal e mais populosa área urbana da capital, era comum os moradores deixarem os brinquedos das crianças e outros objetos debaixo dos blocos ou nos parquinhos próximos, assim como os carros abertos, já que as ocorrências de roubos eram baixas, quase inexistentes. Andar pela cidade a qualquer hora do dia ou da noite era um prazer seguro e comum.

        Essa espécie de paraíso de tranquilidade e paz durou aproximadamente até o início da chamada emancipação política da capital. De lá para cá, o clima citadino mudou de água potável para água contaminada, com a cidade se igualando e até superando muitas capitais do país quando o assunto é insegurança pública. A explosão demográfica e repentina experimentada pela capital não teve paralelo em outras partes do país.

        Do dia para noite, os políticos locais estreantes tomaram posse da cidade, fazendo dela o que seus colegas sempre fizeram em outras partes do país, que é, basicamente, usar a população para alcançar seus objetivos pessoais inconfessáveis. Sem o que oferecer aos seus novos eleitores, esses personagens da política local, muitos de triste memória, passaram a utilizar as áreas públicas, mesmo aquelas dentro de polígonos de preservação como moeda de trocas políticas, dentro da lógica: um voto, um lote.

        Deu no que deu. A cidade, antes meticulosamente planejada para atender às necessidades nacionais de administração, tendo sido, inclusive, por seus méritos arquitetônicos e urbanos, elevada, merecidamente, a patrimônio cultural da humanidade, um status de grande importância internacional, é hoje apenas mais uma cidade brasileira, cercada de miséria e de violência pelos quatro lados.

        Por enquanto, as estatísticas oficiais apontam, a cada dia, mais de quarenta ocorrências de roubos registradas na cidade. O número de quadrilhas, cada uma especializada em determinado nicho do crime, multiplica-se. Integrantes do temido PCC são vistos no Distrito Federal. O tráfico de drogas nunca lucrou tanto. Os casos de assassinatos e de latrocínio aumentaram assustadoramente.

        Todos os dias, os noticiários locais apresentam o retrato de uma cidade em que a criminalidade avança sem parar. Não bastassem essas mazelas, que comumente sempre atingiram outras partes do país, Brasília vai, lentamente, perdendo sua antiga qualidade de vida, substituída por uma modernidade que nada mais é do que o avanço da poeira e da confusão.

        O abandono de superquadras inteiras tomadas pelas invasões de áreas públicas e por um número crescente de barracos de latas, que nascem e se multiplicam como mato, vendendo de tudo, mistura-se ao lixo e ao desmazelo com as áreas verdes.

        Carros estacionam em cima dos gramados. Andar à noite pela cidade é correr sério risco de morte. O barulho, a poluição visual e o desrespeito são regras gerais, tanto no Plano Piloto como nas administrações regionais. Quem manda, de fato, hoje em Brasília são políticos locais. Eles querem exatamente esse caos generalizado, porque é dele justamente que colhem os frutos podres de suas seguidas eleições.

        O centro da cidade, tomado por mendigos e viciados e outros marginalizados, é um retrato acabado da decadência do terceiro mundo. Não se vê policiamento em parte alguma. Mesmo que houvesse, não daria conta do recado, pelo número de arruaceiros que perambulam pelo centro da capital.

        Os governadores, todos eles, só pensam em obras vistosas e caras, capazes de chamar a atenção da população. O desrespeito às regras do tombamento é visto em toda a parte e ameaçam essa honraria. Por toda a parte se vêm a multiplicação de barracos de lonas, abrigando famílias inteiras que vivem nessas áreas públicas sem quaisquer condições humanitárias dignas e sem quaisquer controle dos órgãos de assistência social.

        Também esses serviços, dado o grande número de pessoas em estado de miséria, não dão conta de atender a tanta gente. Vive-se na capital um estado de caos permanente e crescente, com o Plano Piloto tomado por problemas sociais de todo o tipo.

        Essa é a herança, realmente maldita, que vai sendo deixada na soleira da porta das casas de todos os brasilienses, trazida pela invenção da política local. É nisso que se transformou a capital de todos os brasileiros, numa cópia, de um retrato em preto e branco, do que de pior há e havia no restante do país.

        A conhecida Teoria das Janelas Quebradas, na qual o Plano Piloto de Brasília insere-se hoje como um modelo exemplar, mostra, com toda a clareza, que, ao caos urbano e sem cuidados adequados, seguem todos os outros fatores de decadência, no qual a violência e os crimes são as consequências mais vistosas e as mais dramáticas.

 

A frase que foi pronunciada:

Se você for ver Brasília, o importante é o seguinte: você pode gostar ou não dos prédios, mas nunca poderia dizer que já viu algo parecido antes. Aquelas colunas finas, os prédios como penas tocando o chão, tudo isso cria um efeito de surpresa.”

Oscar Niemeyer

 

Sob a batuta de Lúcio Costa, Oscar se diverte grafite e aquarela, 29x21cm, 2010 (evblogaleria.blogspot.com)

História de Brasília

O pessoal da Cidade Livre que se mudou para a Asa Norte está vivendo momentos difíceis. A Prefeitura localizou as residências numa quadra que, posteriormente, foi vendida ao Exército. (Publicada em 23.02.1962)

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