VISTO, LIDO E OUVIDO, criada desde 1960 por Ari Cunha (In memoriam)
Hoje, com Circe Cunha e Mamfil – Manoel de Andrade
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Não é de hoje que se conhece o poder da propaganda na formação de regimes autoritários. O poder que ela exerce no subconsciente humano é evidente. Pela propaganda, regimes que buscam se perenizar no poder atuam no controle e manipulação da opinião pública. Ficasse apenas nesse patamar de ilusionismo, tudo bem. Ocorre que a propaganda estimula, ao seu modo, ameaças subliminares contra os que discordam, classificando-os como cidadãos de segunda ordem, que “uma boa bala e uma bela cova” resolvem, pois “devem ser extirpados” da cena nacional.
Não é exagero dizer que a propaganda é um dos instrumentos mais eficazes na construção e na manutenção de regimes autoritários. Historicamente, ministros da propaganda e aparelhos de comunicação de Estado ajudaram a transformar mensagens repetidas em certezas coletivas: Joseph Goebbels, por exemplo, foi peça-chave na consolidação da imagem do regime nazista e na naturalização de um discurso de ódio e eliminação. Hoje, o que mudou não é o princípio psicológico por trás da propaganda, e sim sua escala, velocidade e sofisticação tecnológica.
Continuamente, a repetição de mensagens em ambientes multimídia fabrica familiaridade; a familiaridade gera sensação de veracidade (o chamado illusory truth effect), e essa dinâmica vale tanto para slogans benignos quanto para narrativas conspiratórias ou desumanizantes. Em termos práticos, quanto mais uma ideia aparece em TV, rádio, buscadores, feeds e outdoors mais fácil ela será aceita como “fato” por um público ocupado e sobrecarregado de informação. No plano institucional brasileiro, essa realidade ganha contornos particularmente perigosos quando a máquina pública vira fonte massiva de financiamento para comunicação privada.
Documentos oficiais e levantamentos mostram que contratos e licitações da Secretaria de Comunicação (Secom), estatais e bancos públicos chegam a somas expressivas e que, em contratos recentes, valores na casa das centenas de milhões aparecem com frequência. A própria Secom publicou notas e contratos que explicam aditivos e valores de contratos multimilionários. Além disso, bases públicas de transparência detalham pagamentos e programas classificados como “publicidade de utilidade pública”, com grandes quantias destinadas a agências e veículos que figuram entre os maiores recebedores dessas verbas.
Para críticos, esse movimento, somado a contratos de estatais e bancos, cria um círculo virtuoso para os grandes conglomerados de mídia o que muitos chamam, em discursos públicos e nas redes, de “consórcio”. Por que isso importa? Porque dinheiro compra alcance e alcance compra agenda-setting ou seja: quem recebe os maiores contratos tem maior capacidade de repetir discursos, definir quais temas ocupam as manchetes e quais atores são humanizados ou desumanizados.
Quando a propaganda institucional é usada com critérios políticos e partidários e não exclusivamente informativos ou de utilidade pública, a linha que separa comunicação pública de propaganda partidária se torna tênue ou desaparece por completo. Essa tendência amplia a reciclabilidade das narrativas no espaço público e reduz a visibilidade de vozes dissidentes ou independentes.
Dados recentes sobre licitações para comunicação digital e contratos estratégicos também apontam para um foco crescente em campanhas online e gerenciamento de reputação institucional. A propaganda não age apenas com argumentos, ela trabalha com imagens, metáforas e com a naturalização da violência simbólica. A desumanização progressiva do adversário tratá-lo como “inimigo”, “traidor”, “pária”, é um passo que transforma legitimação em permissão: quando um grupo é repetidamente enquadrado como perigosamente diferente, somem os freios morais que tornam inaceitável a violência física. Em palavras mais diretas: a cultura do ódio se alimenta da repetição, do financiamento e da amplificação.
Estudos sobre persuasão e repetição deixam claro que esse processo tem efeitos cognitivos mensuráveis; na política, seus efeitos são sociais e tangíveis. Há, portanto, uma tensão clara entre três vetores, o papel legítimo do Estado em informar e educar; o direito à publicidade e contratação de serviços de comunicação por parte de órgãos públicos e o risco de captura desses instrumentos para construir favores políticos e favorecer agrupamentos midiáticos que replicam uma mesma visão de mundo.
O remédio não é censura que por si só seria ferramenta autoritária, mas regras claras, transparência e pluralidade. Transparência real e em tempo útil sobre contratos, critérios de distribuição de verbas e métricas usadas para escolher veículos e agências (auditoria independente). Critérios públicos que separem publicidade institucional informação sobre políticas públicas, saúde, segurança, de comunicação de imagem governamental com limites temporais e controles legais. Investimento em mídia pública independente e regional, com governança que minimize indicações políticas e maximize pluralidade. Fortalecimento de jornalismo local, de fact-checking e de alfabetização midiática para tornar a sociedade menos vulnerável ao efeito da repetição mecânica.
Por fim, um apelo combater a propaganda nociva exige que o público recupere um papel ativo de escrutínio. Somos nós leitores, ouvintes, eleitores que podemos transformar familiaridade em dúvida produtiva, buscar fontes, exigir prestação de contas dos gastos públicos em comunicação e não aceitar a naturalização da violência simbólica. Sem isso, argumentos e cifras se transformam em um eco que, pouco a pouco, muda o que consideramos possível ou aceitável. De olho nos recursos infindos, que sustentam o que chamam de um “consórcio”, que afinal não é mais do que um arranjo político antinatural e anticonstitucional e que infecciona a democracia na carne, matando-a à facadas , na cara de todos, o meio da praça, à luz do dia.
A frase que foi pronunciada:
“No fundo só há duas políticas: a política de governo e a política de oposição.”
Joaquim Nabuco

História de Brasília
Como sempre, não faltam as cenas deprimentes. Um ônibus da Marinha quis atravessar com o trânsito interrompido, e desobedeceu a um guarda do DFSP. O povo vaiou os ocupantes, e um sargento da Marinha ameaçou sacando um revolver. (Publicado em 10.05.1962)





