VISTO, LIDO E OUVIDO, criada desde 1960 por Ari Cunha (In memoriam)
Hoje, com Circe Cunha e Mamfil – Manoel de Andrade
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Entre as várias facetas que possibilitaram a ascensão do ser humano ao patamar civilizatório — juntamente com o domínio da agricultura, do fogo, está o culto aos antepassados. Tal prática, longe de ser mero resquício de um passado obscuro e supersticioso, constitui uma das expressões mais profundas da consciência histórica e da projeção do ser humano no tempo.
Comum a todas as civilizações antigas, o ritual de celebração e rememoração dos entes falecidos constituiu-se em um dos pilares que resultaria, posteriormente, na formação embrionária da religião. Os monumentos megalíticos, os túmulos monumentais e as cerimônias fúnebres complexas. Todos esses elementos apontam para uma tentativa de dialogar com o invisível e de eternizar na memória coletiva aqueles que vieram antes e cujas ações moldaram o presente de seus descendentes.
O culto aos mortos, em seu sentido ontológico, permitiu à humanidade estender para o pretérito o significado de sua existência, ligando-a até o presente e, por consequência, expandindo o sentimento de continuidade para o futuro. Em outras palavras, a reverência aos antepassados consolidou a noção de que o tempo não é uma sucessão de instantes isolados, mas uma corrente contínua, em que o ontem toca no hoje e projeta-se no amanhã. As experiências trazidas pelos entes do passado possibilitaram à existência presente maior conforto, sabedoria e resiliência. Foram as cicatrizes dos que vieram antes que abriram os caminhos pelos quais hoje trilhamos.
A percepção da finitude despertou a necessidade de permanência simbólica, fosse por meio da memória, da herança ou da transcendência espiritual. O humano, ao reconhecer sua impermanência biológica, inventou a eternidade cultural.
Muito mais do que simples rituais metafísicos, a meditação sobre a personalidade e os acontecimentos passados desencadeou na espécie humana o desejo pelas possibilidades. Dessa forma, a construção do futuro está, indissociavelmente, ligada aos fatos passados, constituindo-se no alicerce do presente e na base do que ainda virá.
Esse elo com o tempo, no entanto, parece cada vez mais tênue na contemporaneidade. Deixados de lado este e outros aspectos próprios da antropologia cultural e dando um salto até os dias atuais — particularmente no contexto da sociedade brasileira —, o que se percebe, à primeira vista, é que o encurtamento de nossa memória, seja pela insuficiência de informação, seja pelo excesso dela, o que tem transformado cada um de nós em seres inertes, entorpecidos pela velocidade dos acontecimentos, pela espuma das narrativas efêmeras e pela desinformação crônica.
Vivemos a era da amnésia seletiva. O desprezo pelas experiências do passado nos tornou reféns de nós mesmos, entregues a um estado de letargia permanente. Já não nos indignamos com o absurdo cotidiano, aceitando de bom grado o prato frio que nos servem — por vezes requentado com promessas quebradas e discursos desgastados. É a anestesia das consciências, o colapso da responsabilidade histórica.
É justamente essa sociedade, dita moderna, que encara a morte com assepsia total — limpa, distante, institucionalizada — a mesma que vai apodrecendo a céu aberto, moralmente putrefata, condenada, como Prometeu, a ter o fígado (a índole) devorado, diariamente, pelos abutres do poder, do marketing ideológico, da manipulação semântica.
O afastamento simbólico da morte, aliado ao desprezo pelas lições dos mortos, resultou numa geração que não sabe de onde veio, nem para onde vai. Uma sociedade que ri de sua própria decadência, que chama de progresso aquilo que é corrosão de seus pilares mais profundos, que celebra o presente como se o passado fosse lixo e o futuro, irrelevante. Assim, abandonamos nossos mortos e, com eles, enterramos nossa própria consciência.
A frase que foi pronunciada:
“Não é a consciência do homem que lhe determina o ser, mas, ao contrário, o seu ser social que lhe determina a consciência.”
Karl Marx
História de Brasília
Intransitáveis, os corredores dos blocos do IAPC. Sujeira excessiva e ninguém tem mais esperança de limpeza. Agora, que uma firma estará encarregada do serviço, pode ser que melhore. (Publicada em 5/5/1962)