José Serra e Fernando Henrique

Publicado em ÍNTEGRA

VISTO, LIDO E OUVIDO, criada por Ari Cunha (In memoriam)

Desde 1960, com Circe Cunha e Mamfil – Manoel de Andrade

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Foto: Dida Sampaio/AE

 

Atribuem-se ao caráter quase monárquico de nosso presidencialismo, herdado obviamente da fase anterior à 1889, alguns dos maiores defeitos desse sistema e também seu calcanhar de Aquiles. Dizem que está na dureza de uma rocha sua maior fragilidade. Talvez seja essa inflexibilidade e rigidez um dos fatores a gerar crises institucionais recorrentes. Num país continental e com tantas discrepâncias sociais e econômicas, tomar assento no Palácio do Planalto, com uma miríade de legendas políticas, ávidas por espaços e recursos, não é tarefa para pessoas sem o devido preparo e sem a sensibilidade de gestão que o cargo exige.

Talvez, por isso mesmo, as crises frequentes, todas elas centradas e decorrentes do próprio presidente da República. De fato, desde a redemocratização, as seguidas crises podem ser personificadas na figura do chefe do Executivo, mais precisamente na sua incapacidade diante de um desafio ciclópico como esse. Mas como toda regra possui uma exceção que a confirma, merece destaque aqui, até por representar um ponto fora dessa curva de poucos talentos, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que, como o 34º mandatário da República Federativa do país, entre 1995 e 2003, notabilizou-se por ser o mais bem preparado para a função e que soube, como nenhum outro no passado, talvez caiba aqui também uma exceção ao ex-presidente Juscelino Kubitscheck (1956-1961), a quem muitos analistas dessa matéria enxergam semelhanças com FHC no quesito conciliação e boa disposição em negociar e buscar entendimentos em momentos de instabilidade.

Com essa capacidade intelectual e afável, FHC pôde, com a ajuda de seu bem escalado ministério, mudar os rumos do país, preparando-o para os desafios impostos pelo século 21. Ao comemorar agora seus provectos 90 anos, FHC lança seu vigésimo sexto livro, Um intelectual na política, no qual narra, de memória, sua vida política, acertos e contratempos.

Durante todo o tempo em que exerceu seu mandato, FHC pôde contar com a assessoria de um dos melhores e mais bem preparado conjunto de ministros já reunidos num só governo. Contando com excelentes técnicos, o governo FHC tornou realidade o que parecia impossível: debelar uma das mais altas e resistentes inflações do mundo.
Graças a um engenhoso e metódico plano econômico, sua equipe deu ao Brasil, depois de décadas, uma moeda estável e com um lastro que correspondia à importância do país. Nessa equipe, o nome de José Serra ganharia as manchetes de todo o país por sua enorme capacidade de trabalho e pelo legado que deixaria à frente do Ministério do Planejamento e, sobretudo, no comando do Ministério da Saúde, onde promoveu uma verdadeira revolução administrativa. Nestes tempos sombrios de pandemia, faz falta o talento de gestores políticos e pragmáticos do quilate de José Serra.

À frente do Ministério da Saúde, implementou um programa de enfrentamento à Aids que seria copiado em todo o mundo e saudado pela ONU como um exemplo a ser seguido. Também no MS foi o idealizador da lei de incentivo aos medicamentos genéricos, forçando a queda desses produtos no mercado, além de reduzir a zero os impostos federais incidentes nos medicamentos, principalmente aqueles de uso contínuo, muito utilizados pela população de baixa renda. Foi ele quem também regulamentou a lei de patentes, solicitando o uso obrigatório de fármacos em caso de emergência na saúde pública. Com isso, patentes importantes de medicamentos, como é caso daqueles que eram indicados para o tratamento da Aids, foram quebradas para atender às vítimas daquela doença, tão temida naquela época.

José Serra deu todo apoio do ministério ao Programa Saúde da Família, ampliando as equipes em todo o país, dentro do princípio que considerava esse trabalho como estratégia de saúde para desafogar os hospitais, visando dar maior humanização ao atendimento do SUS. Com José Serra, foi ainda criada a Central Nacional de Transplantes, além de inúmeros mutirões de cirurgias em todo o país, com destaque para as cirurgias de cataratas e outras. Foi ele também que introduziu a vacinação dos idosos contra a gripe e que tornou realidade a eliminação do sarampo naquela ocasião. A criação da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), regulando, pela primeira vez, o turbulento mercado de planos privados de saúde, também foi obra sua. Assim como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que passou a fazer o importante trabalho de controle sanitário de produtos e serviços da saúde.

Como ministro e político, José Serra conseguiu que o Congresso aprovasse leis endurecendo medidas contra as indústrias de fumo, levando adiante uma campanha nacional e revolucionária contra o tabagismo, com vedação de publicidade, proibição de fumos em repartições, mandando estampar nos maços imagens que mostravam os efeitos desse vício sobre a saúde humana, sobretudo nos mais jovens.

Tivéssemos um nome dessa qualidade hoje, quando o Brasil chora seus mortos pela covid-19, sem dúvida alguma, essa pandemia não teria criado raízes entre nós e não estaríamos lamentando a morte de meio milhão de brasileiros em pouco mais de um ano. Infelizmente, José Serra não logrou ser, como todos esperavam, o sucessor natural de FHC, o que seria um verdadeiro ponto de inflexão na história do Brasil.

Quis o destino, esse Malasartes, que o país fosse entregue novamente nas mãos despreparadas e sem ética de outro aventureiro. Deu no que deu.

 

 

A frase que foi pronunciada
“Na minha vida pública, já fui governo e já fui oposição. De um lado ou de outro, nunca me dei à frivolidade das bravatas, nunca investi no ‘quanto pior, melhor’, nunca exerci a política do ódio.”
José Serra

Foto: Beto Barata/PR

 

História de Brasília
E há mais. Banheiros devassáveis de madeira dão um atestado humilhante a uma área onde as residências custam, em média, cinco milhões de cruzeiros. (Publicada em 03.02.1962)

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