Sufrágio dos Bichos

Publicado em ÍNTEGRA

VISTO, LIDO E OUVIDO, criada desde 1960 por Ari Cunha (In memoriam)

Hoje, com Circe Cunha e Mamfil – Manoel de Andrade

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Charge do Baggi

No velho campo onde se reuniam as espécies, aproximava-se, mais uma vez, o tempo da escolha. Era um ritual conhecido: a cada estação certa, reuniam-se os bichos em assembleia, fingindo surpresa com os nomes apresentados, como se não os conhecessem desde os tempos em que aprenderam a farejar o perigo. O curioso é que, a cada nova escolha, falava-se em renovação. Mas bastava olhar com mais atenção para notar que os candidatos ao pasto principal eram quase sempre os mesmos. Alguns, impedidos de se apresentar no curral central por conta de antigos escândalos no galinheiro, enviavam representantes treinados: o sobrinho do jumento, a esposa do galo, o afilhado da raposa. Todos bem ensaiados, com discursos decorados e promessas renovadas. Chamavam isso de continuidade com outra roupagem. Os mais crédulos chamavam de mudança. Ninguém sabia ao certo quem havia inventado a prática, mas ela funcionava com precisão.

Os mesmos que haviam devorado os grãos do celeiro agora voltavam com novas penas, distribuindo sementes como se fossem dádivas. E os bichos, com fome ou com esperança, aceitavam. Afinal, quem recusa comida quando o inverno ameaça? O mais espantoso é que o ritual se repetia sem sobressaltos. Alguns animais até se indignavam, relinchavam, grasnavam em protesto, mas, no fim, cediam ao espetáculo. A promessa de feno fresco e sombra larga faziam com que muitos esquecessem os episódios de estiagem, os grãos desaparecidos, os ninhos abandonados.

As assembleias, cada vez mais barulhentas, pareciam ter virado feiras. Entre cartazes com desenhos de frutas e slogans sobre o futuro do brejo, os velhos macacos distribuíam bananas, as cobras ofereciam simpatia e os leões aposentados cochichavam no ouvido de seus substitutos. Tudo sob o olhar tolerante dos gansos, que fingiam não ver, ou não entender. Ao fim, o que se desenhava era sempre parecido com o começo. Mudava-se a voz, trocava-se o casaco, reformavam a cerca. Mas a trilha do curral era a mesma, e os caminhos levavam ao mesmo estábulo, onde só alguns tinham direito a ração especial.

Entre berrantes e promessas, entre milho e teatro, a escolha dos líderes seguia seu curso.

A cerimônia tinha ares de celebração, mas carregava também certo tédio repetitivo. Os tambores batiam forte, campanhas publicitárias prometiam horizontes, e os bichos, empolgados, balançavam a cauda. Havia até quem trocasse de penas. Era como se os bichos, embora inquietos, tivessem esquecido que a natureza não se altera com fantasia nova.

Quem era proibido de entrar no curral encontrava um jeito de manter-se no comando. O tempo passava e, com ele, a indignação se esvaía, como o rastro de uma lesma ao sol. Nas tocas mais escuras e nas clareiras mais discretas, comentavam com certo receio que era melhor guardar as opiniões nas gavetas. Opinião contrária era acinte.

Mas os mensageiros da floresta, aqueles que viviam de sussurrar ao pé dos cupinzeiros e retransmitir fake news no sopro do vento, logo tratavam de abafar o incômodo. Falavam em união, em cicatrização das feridas, em conciliação entre espécies. Repreendiam quem ousasse lembrar o que se passou. Afinal, insistiam, todos têm direito a uma segunda chance… terceira ou décima chance. Enquanto os mais atentos tentavam rememorar os desmandos da última temporada, aqueles que tomaram o silo e as serpentes foram nomeadas para vigiar os ovos. Os mais jovens, ou mais desatentos, deixavam-se encantar pela fluência dos novos discursos, que soavam como os antigos com a diferença de uma musiquinha patrocinada ao fundo.

E assim, a assembleia se formava com um som ruidoso, onde panfletos forravam o chão, as bandeiras com frutas coloridas tremulavam ao vento estampando frases de efeito sobre o futuro do brejo. Quem ousasse apontar erros ou questionar o ciclo vicioso era logo lembrado: em terra de sapo, mosca não dá rasante.

 

 

A frase que foi pronunciada:

“É um grande debate global o quanto aquele processo inflacionário correspondia a um choque de oferta pela desarticulação das cadeias produtivas e dificuldade de produzir, e o quanto correspondia a uma questão de demanda decorrente dos programas de transferência de renda e socorro por causa da pandemia. A minha posição, eu recorro sempre a uma frase do Churchill: a verdade é uma adúltera, nunca está com uma pessoa só.”

Gabriel Galípolo

Gabriel Galípolo. Foto: Roque de Sá/Agência Senado

 

História de Brasília

O panorama napolitano de roupas ao vento nas janelas e nos corredores, outrora privilégio das quadras 409-10 já se estendeu à Asa Norte. O Bloco 42 comanda o espetáculo. (Publicada em 05.05.1962)

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