Arte Maurenilson / Correio Braziliense Arte Maurenilson / Correio Braziliense

Despedida programada

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(da Revista do Correio) (fotos Zuleika de Souza/@cbfotografia)

 

O best-seller Marley e Eu, lançado em 2005 pelo jornalista norte-americano John Grogan, foi um sucesso de vendas e se manteve por 110 semanas na lista dos livros mais vendidos no Brasil. Embora a obra seja uma biografia de Grogan, todos os acontecimentos da família são narrados incluindo a perspectiva de Marley, ressaltando a importância do labrador e detalhando suas aventuras. O livro ganhou uma adaptação para o cinema em 2008 e uma das cenas mais emocionantes foi a da eutanásia do cão. Ele sofria de uma doença típica da raça: a torção de estômago. Após o procedimento, feito em uma clínica veterinária, o corpo do animal é enterrado no quintal da casa em que vivia e a família simula um funeral, com direito a cartas e desenhos feitos pelas crianças. Como qualquer processo de luto, perder um bichinho também envolve dificuldades de aceitação, saudades e medo para todos, especialmente para os cuidadores, que algumas vezes precisam tomar a difícil decisão de aliviar o sofrimento do animal e antecipar a morte dele.

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A família da empresária Samara Campos(foto), 38 anos, já passou várias vezes pela experiência de ter um pet em estado terminal. Volta e meia ela resgata algum cão e gato abandonado em estado frágil de saúde. O caso mais marcante para ela foi o da cadela Suzi. Ela partiu em 2002, depois de viver 14 anos, após desenvolver um câncer causado pela injeção de anticoncepcionais. Mesmo com a redução do tumor, a doença já havia se espalhado para o corpo todo. “A gente removeu o tumor e ela passou um mês sofrendo. Ela foi definhando porque não tinha mais jeito”, lamenta Samara. Suzi chegou em uma caixa de sapatos, após ser rejeitada pela mãe, e foi companheira fiel desde a infância da empresária. “Foi igual filha pra mim”, recorda. Justamente pela carga emocional, Samara defende que a eutanásia foi o melhor caminho para se despedir da amiga. “Você vai deixar seu filho sofrendo com câncer ou vai abreviar o sofrimento dele? Às vezes, é uma coisa sem expectativa, que precisa acabar”, argumenta.

Ela também já perdeu um fila brasileiro de 3 anos para a parvovirose, uma doença causada por um vírus que provoca, entre outras coisas, diarreia com sangue. Samara viu morrer ainda duas de suas gatas resgatadas das ruas: uma com os dois olhos perfurados e o vírus da leucemia felina, e a outra, mordida por um cachorro. A agressão danificou muitos órgãos internos da gatinha, que foi desacreditada pela veterinária. “Ela até tentou fazer alguma coisa, mas a própria medicação usada praticamente sacrificou a bichinha. Ela teve hemorragia interna”, diz. “As pessoas tinham que pensar que existe muito bicho sendo

sacrificado por irresponsabilidade. Abandonam o bicho, sem pensar o que vai ser dele amanhã, que acaba passando fome na rua. Quando chegamos para resgatar, já está doente”, explica.

Nos casos em que as doenças são mais fortes do que as soluções disponibilizadas pela medicina, uma opção pode ser abreviar o tempo restante de vida do animal, quando há excesso de dor e falta de esperanças. O veterinário Fernando Resende explica que a regra é analisar cada caso separadamente, sem generalizações. Problemas antes vistos como irreversíveis, hoje já têm soluções.

A paralisia das patas traseiras, por exemplo, já foi motivo suficiente para encurtar a vida do pet. Uma das causas mais frequentes é a displasia coxofemural, doença hereditária e degenerativa que apresenta os primeiros sintomas ainda na infância, como dificuldade de caminhar. A professora Hosana Marques, de 50 anos, sacrificou a cadela Nika na década de 1990, após o diagnóstico da doença. Na época, a displasia coxofemural tinha status de doença degenerativa sem perspectiva de melhoras e a família não foi aconselhada a seguir com os cuidados do tratamento.

Atualmente, porém, já existem empresas que desenvolvem cadeiras de roda próprias para os bichos, permitindo que eles tenham mais qualidade de vida. Além do desenvolvimento tecnológico, a própria noção de que as deficiências físicas não são totalmente incapacitantes também permitiu que os animais conquistassem o direito a uma segunda chance.

Fatores determinantes para optar pela eutanásia são a condição financeira e a disponibilidade do tutor, além da idade, da raça e do estado de saúde do animal. Quando o uso das medicações já não surte mais efeito e o bicho sofre, é dado o primeiro alerta. O procedimento geralmente é recomendado pela equipe veterinária quando não existe perspectiva de melhora ou de cura de uma condição que prejudica a qualidade de vida do animal. A decisão final, porém, sempre é do tutor. “Recomendamos que seja feito no caso do animal que não tenha condições de receber o tratamento ou o proprietário, por quaisquer motivos, não possa cuidar”, esclarece Resende.

Caso a decisão seja pela eutanásia, o procedimento jamais deve ser realizado em casa, mas sempre em uma clínica com unidade de pronto atendimento, onde os batimentos cardíacos e outros sinais vitais do animal são verificados em tempo real. Além disso, o profissional usa medicamentos específicos, que não causam sofrimento e agem no organismo de modo rápido, provocando a parada cardiorrespiratória.

 

Para uma passagem tranquila

 

Uma vez tomada a decisão, é preciso se preparar para o dia do procedimento. A psicóloga Elaine Alves, membro do Laboratório de Estudos sobre a Morte, da Universidade de São Paulo, explica que o chamado luto antecipatório é um processo que já começa antes da partida. Apesar de não amenizar a dor, o momento é importante, pois a angústia, o medo e a ansiedade mais controlados ajudam na aceitação. Outro passo importante é sempre que possível acompanhar o procedimento de eutanásia, permanecer junto do pet e “ir até o final, mesmo que seja difícil”, como a especialista define. Caso o tutor não tenha condições emocionais para encarar a passagem, deve ser feita uma despedida.

O acompanhamento com psicólogos, porém, não é essencial, mas é indicado para quem não consegue lidar com a situação e reprime os próprios sentimentos: “O luto não é doença, não precisa de terapia. A pessoa vai pra terapia porque a sociedade não está disposta a ouvir. O luto por animal é um luto não autorizado. A maioria das pessoas não entende isso e não dá valor para essa perda”, denuncia. “Falar é o tratamento. Não existe dor maior nem menor, existe a dor da pessoa que deve ser respeitada”, acrescenta.

A psicóloga ressalta também a importância de que toda a equipe veterinária, principalmente o médico, seja solidária aos tutores que estão prestes a perder um pet. “Você sente que não está sozinho, que você está sendo cuidado. É importante que o veterinário acolha esse sofrimento e esteja junto”, recomenda.

Foto Arquivo Pessoal. Paulo Henrique Vieira com sue cão Feio.
Foto Arquivo Pessoal. Paulo Henrique Vieira com sue cão Feio.

Foi o que aconteceu com a família do assistente técnico Paulo Henrique Vieira(foto), 25 anos. Há quatro meses, eles disseram adeus a Feio, um fila brasileiro de 13 anos. Feio estava com um câncer assintomático há mais de um ano, e quando a doença foi descoberta, já era tarde. O cão estava em estado terminal e nenhum tratamento foi iniciado. Foi, então, submetido a uma eutanásia. “Ele era muito grande e forte, mas na época só estava pele e osso. A gente via que ele estava mal, mas achou apenas que ele não estava comendo, nunca esperávamos o pior”, conta.

Apesar de Paulo sentir que a perda foi pior que um falecimento comum e opção pela eutanásia tenha antecipado o sofrimento, o apoio veio de quem acompanhou o drama desde o início: a veterinária. Além de explicar que a cirurgia não era garantia de cura, a profissional teve empatia pela situação. “O jeito dela foi cuidadoso. Foi amaciando a gente, nos preparando para falar. Ela foi atenciosa, jamais disse ‘precisamos matá-lo porque está morrendo’”, relembra Paulo, agradecido. Nenhum membro da família acompanhou os momentos finais de Feio, pois a veterinária orientou que traria mais sofrimento. Foi garantido a eles que o procedimento, com injeção legal, foi rápido e indolor. O corpo foi descartado pela própria clínica, com o lixo hospitalar, como é determinado pelo procedimento padrão. “Lá em casa todo mundo cuidava dele. Minha mãe e minha irmã, quando ficaram sabendo, sentiram-se muito abaladas”, conta ele.

Outra orientação para se fortalecer durante o processo é encontrar amparo na religião, principalmente no caso das pessoas radicalmente contra a eutanásia. Marta Antunes, vice-presidente da Federação Espírita Brasileira, explica que a doutrina espírita não sugere a prática já que o sofrimento é do corpo e não do espírito. “Qualquer ser vivo, seja humano ou animal, se está perto de morrer, procuramos deixar que a natureza siga seu curso. Não fomos nós que demos aquela vida. A eutanásia é violação do direito de viver e tentativa de se livra do próprio sofrimento em ver a situação”, afirma. A única medida prática, segundo ela, a ser tomada é o uso de medicamentos para evitar a dor, além de oferecer carinho ao bicho. O apoio é uma ferramenta importante para enfrentar as enfermidades.

Marta explica que a doutrina espírita estabelece que os bichos eutanasiados têm o mesmo destino dos demais, apesar de a passagem ser mais difícil. Ela lembra ainda que o processo piora o desconforto do animal, já que ele é capaz de sentir o que está acontecendo. “O instinto é uma lei biológica, é a sobrevivência da espécie. Ele sabe quando está sob ameaça”, diz. Ela ainda acrescenta que é preciso ter em mente que a vida continua na dimensão extrafísica, não se encerrando com a morte do corpo. Essa seria então a razão da existência de laços afetivos. Para pessoas que não acreditam em vida após a morte, superar a perda pode ser mais difícil. “Quem não acredita que a vida continua vai sofrer. Quando cremos que a vida continua, temos a esperança de nos reencontrarmos e de sabermos que está bem”, comenta. Nesses casos, um caminho possível para aliviar o luto é se doar para alguma atividade. “Canalizar pra uma causa social, humanitária, fazer o bem, porque gente de alguma maneira diminui aquele sofrimento”, recomenda. Isso seria mais eficaz do que tentar substituir o animal, por exemplo.

 

 

Negligência profissional

 

 

Os problemas enfrentados pelo akita de Estéfane Cruz, 22 anos, não foram uma fatalidade. Tudo começou quando Ryu Aka ingressou em um curso de adestramento, em 2013. A estudante conta que o animal era muito bonito e ela desejava que ele frequentasse exposições, mas, para isso, o comportamento do akita precisaria ser adaptado. O canil de onde Ryu Aka veio indicou um adestrador, cuja única informação conhecida é que morava em Sobradinho. Ele não revelava seu endereço e sempre encontrava Estéfane em algum local para buscar o cão. Quando o akita tinha 1 ano e meio de idade, a jovem notou que ele havia voltado ferido do treinamento. “O adestrador o machucou nas costas. Quando ele voltou, estava com movimento involuntário nas patas de trás”, conta.

Estéfane levou Ryu Aka em vários veterinários. Um dos profissionais ameaçou, inclusive, chamar a polícia. Apesar das tentativas insistentes da estudante, o adestrador nunca mais atendeu a suas ligações e está desaparecido desde então. Durante as consultas, foi descoberto também que Ryu Aka, fragilizado pelas agressões, tinha contraído a erlichiose, conhecida como doença do carrapato. “A gente tinha muita fé de que ia dar certo, mas quando a gente encontrou esse veterinário, ele falou que não tinha mais volta, tinha perdido os movimentos do pescoço pra baixo”, desabafa. O médico tentou aplicar uma vacina e indicar o uso de cadeira de rodas, mas, após o 11º dia de tratamento, Estéfany foi chamada para se despedir. Caso a doença alcançasse os pulmões, Ryu Aka não conseguiria mais respirar. “A gente não espera que vá perder essa parte tão importante da sua vida por um descuido de uma outra pessoa”, lamenta.

 

 

Como um ente querido

 

A jornalista Luana Rodrigues, 24 anos, despediu-se da gata Jujuba em junho de 2015. A sobrevida da bichana foi longa e razoavelmente saudável. Na época da descoberta do câncer, em 2012, ela estava prenha e teve mais duas ninhadas em seguida. Conseguiu amamentar todos os filhotes e um deles ainda vive com Luana. O primeiro veterinário consultado deu a opção pela eutanásia, mas, como a doença ainda estava controlada, a família decidiu seguir com o tratamento.

Com a progressão da doença, apareceram feridas na pele da gata, que eram tratadas com pomada. O tumor, porém, não parava de avançar e quando os machucados ficaram muito grandes Luana decidiu aliviar a dor do animal. Em novembro de 2015, aos 14 anos, Jujuba foi levada ao Centro de Zoonoses, e a equipe veterinária do local garantiu que a eutanásia poderia ser aplicada.

No mesmo dia, a gata foi preparada para o procedimento. “Não tinha mais condição. Como ela era muito velha, se a gente fizesse cirurgia seriam mínimas as melhorias”, explica Luana. A jovem é grata pelo tempo de despedida que teve durante o tratamento de Jujuba e garante que é preciso reconhecer os limites do animal. “Você vê que é igual com uma pessoa, um ente querido. Não aceita de inicio, mas depois acaba se conformando e sabendo que aquilo dali era o melhor, sem ser egoísta.

 

 

 

Depois do adeus

 

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O Memorial Jardim dos Animais, inaugurado em 2011, foi o primeiro cemitério particular para animais do Centro-Oeste e já recebeu mais de 1,2 mil corpos. A psicopedagoga Sheila Ribeiro decidiu criar o espaço depois que o kyi-leo Bigode chegou à família, há 14 anos. Bigode está vivo e saudável, mas, quando a psicopedagoga assistiu a uma reportagem de televisão falando sobre os destinos pós-morte para os pets, percebeu que não existiam opções para honrar a memória do companheiro como ela gostaria. “É nosso filho de quatro patinhas”, declara.

O cemitério fica em uma área rural, entre Águas Lindas de Goiás e Santo Antônio do Descoberto. A fundadora do cemitério explica que executar o projeto fora da área foi uma decisão cuidadosamente pensada: “A área rural é o habitat natural deles. Tem uma visão bonita da natureza, que garante que eles estão bem guardadinhos e cuidados.”

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A equipe conta com seis membros, incluindo motorista, atendimento e gerência. São várias as possibilidades de contratação do serviço. No caso dos jazigos perpétuos, o valor chega a R$ 500 e há como adicionar o caixão de mais um animal pelo custo de R$ 250. Nos outros casos, depois de dois anos é questionado ao tutor se os restos mortais podem ir para o ossário ou se ele renovará mais dois anos no jazigo. Para os jazigos não perpétuos, a taxa é de R$ 300. O plano funerário, comprado antecipadamente, permite que o valor seja pago em três ou cinco vezes, dependendo do sepultamento escolhido. Sheila explica que essa é uma chance de maior planejamento financeiro, já que os custos com um sepultamento podem ser altos. Todas as opções exigem a taxa de manutenção anual de R$ 132, independente do número de corpos, e incluem lápide em granito, traslado do corpo, embalagem padrão e utilização da sala de velórios. Quando o tutor opta por realizar o sepultamento dias após a morte, o corpo é encaminhado para refrigeração.

Ela ainda criou o Dia de Agradecimento, sempre no primeiro sábado de outubro, ao notar que as visitas aconteciam principalmente no Dia de Finados, apesar de o local ser aberto de 9h às 16h em dias úteis. Ela ressalta ainda que o clima era de muita tristeza e esse não era o objetivo quando criou o Jardim dos Animais. Além do tradicional lanche, no Dia de Agradecimento são feitas várias atividades para celebrar as histórias de quem Sheila chama de “inquilinos”.

Ela inicia os trabalhos fazendo a oração de São Francisco de Assis, protetor dos animais, e faz discurso de apoio. Os tutores soltam bolinhas de sabão, participam de uma roda de conversa para compartilhar histórias memoráveis dos bichos e levam fotografias para o mural do estabelecimento. “Imagino que as pessoas querem falar sobre eles. Todos ficam muito emocionados em levar a foto, principalmente os idosos, para quem a perda é mais difícil”, garante. A data também ajuda em uma atividade extraoficial do Jardim dos Animais: o recebimento de doações de ração e utensílios dos falecidos para abrigos. Sheila conta que, em todos esses anos de trabalho, a maior recompensa e aprendizado é o amor incondicional. “É muito lindo ver o tanto que os animais ajudam as pessoas e saber que estou ajudando naquele momento me torna uma pessoa mais feliz.”

Outra alternativa é a cremação. Já o Paraíso Animal, criado em Sobradinho também em 2011, por Luis Felippe Lopes, em uma tentativa de garantir paz para o bicho de estimação, é especializado no serviço e também. O serviço pode ser contratado a partir de R$ 500. Muitos tutores optam pela cremação pela possibilidade de guardar as cinzas, fazer um memorial ou mesmo jogar o material no mar. Alguns órgãos públicos, como prefeituras, fazem isso gratuitamente.

Nesses casos, não é possível levar os restos mortais para casa, já que as cremações são coletivas. A medida costuma ser uma solução de saúde pública: quando o animal faleceu devido a doenças desconhecidas ou transmissíveis, como toxoplasmose e raiva, enterrar favorece o ciclo de contaminação.

 

 

O que diz a lei

Para abrir um cemitério particular, um dos documentos necessários é o licenciamento ambiental, já que enterrar corpos sem estudo do solo pode causar contaminação do local. No Distrito Federal, o órgão responsável pela emissão de licenças é a Secretaria do Meio Ambiente. O parâmetro legal para a autorização é a Política Nacional de Meio Ambiente, instituída pela Lei Federal nº 6.938/81. O serviço é regulamentado pelo Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil (Sincep).