Urubus do texto

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     As aspas são os urubus do texto. Umas e outros enfeiam a paisagem. Ninguém gosta de ver as aves de cabeça pelada sobrevoando carniça. Nem de bater o olho na duplinha “ montada na palavra. Xô, coisas feias!


    Guarde isto: os dois pauzinhos não foram feitos para destacar vocábulos estrangeiros. Nem para chamar a atenção. O bom autor chama a atenção com o recado que transmite. Não com as macaquinhas encarapitas em palavras, frases ou parágrafos.


    Por isso, seja sovina. Com as aspas, todo pão-durismo é pouco. Vale, antes de recorrer a elas, lembrar a sabedoria mineira. Na dúvida, não as use. Se as usar, não abuse. Use-as só quando forem indispensáveis. É o caso do texto dos outros.

É dele


    Em citações, declarações e transcrições, os urubuzinhos colaboram com a honestidade intelectual. Deixam claro que o trecho aspeado não é de autoria de quem escreve: “O povo não deve parar de comprar”, disse Lula em discurso  transmitido pelas tevês. Tocqueville ensinou: “A história é uma galeria de quadros onde há poucos originais e muitas cópias”. Segundo Bush, os Estados Unidos têm direito de usar “força total” contra o Iraque.

Atenção, moçada


    Quando uma citação passa de um parágrafo para outro, olho vivo. A cada parágrafo, cutuque o leitor. Diga-lhe que o texto não é seu. Por isso, abra aspas. Mas só as feche quando chegar ao fim da citação.

    “Se você deseja ser compreendido, suas frases deverão atender a requisito essencial: a clareza. É uma exigência para a qual não existe meio termo. Se a frase for clara, você dirá o que quis dizer. Se a frase for obscura, você provocará confusão.

    “O escritor americano E. B. White observou que a confusão não é apenas um distúrbio da prosa. Trata-se também de uma destruidora de vidas e esperanças: há viajantes que não encontram quem os aguarde no desembarque por culpa de um telegrama mal-endereçado; há casais que se separam depois de uma frase infeliz numa carta cheia de boas intenções; e há gente que morre nas rodovias vitimada por palavras obscuras de uma placa de sinalização.” (Manual de Estilo da Editora Abril)



Ninguém tasca


    O requinte está nos detalhes. Um autor caprichoso mantém-se atento aos pormenores. Um deles é a briga do ponto com as aspas. Dentro ou fora? A disputa tem regras.


    1. A César o que é de César. O ponto vai dentro do parzinho se o período começar e terminar com aspas. A razão é simples. O ponto faz parte da citação. É dela. Ninguém tasca: “O grande escritor tem estilo; o pequeno, maneira.”  “Os que escrevem como falam, ainda que falem muito bem, escrevem mal.”  “Uma palavra posta fora do lugar estraga o pensamento mais bonito.”



Metido


    2. O ponto vai fora se o trecho aspeado for intrometido. Em outras palavras: se enfiar-se em outro que já começou: Segundo Christian Morgenstern, “o grande escritor tem estilo; o pequeno, maneira”. Para Fernando Pessoa, “tudo vale a pena se a alma não é pequena”. Voltaire acredita que “uma palavra posta fora do lugar estraga o pensamento mais bonito”.

Não contam
   

    Às vezes, a gente começa a citação. No meio do caminho, interrompe-a. Em seguida a retoma. Acredite: a pausa é um zero à direita. Não conta: “Aí temos a lei”, dizia o Florentino, “mas quem as há de segurar? Ninguém.”

Vale por dois


    A língua detesta redundâncias. Se o período cercadinho estiver pontuado, o ponto dele vale por dois: conclui a citação e dá fim ao enunciado. Brás Cubas perguntou: “Por que não nasci eu um simples vaga-lume?” “Aí temos a lei, dizia o Florentino, “mas quem as há de segurar?”