A família acima de tudo

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Recado“Criar é matar a morte.” Roman Rolland Deus no céu e a família na Terra Dizem que a língua é um sistema de ciladas. Vários argumentos provam a tese. Um deles: o verbo reaver. Ele tem toda a pinta de derivado do verbo ver. Mas não é. A cara inocente engana gente boa. É o caso de redatores do jornal. Na página 33 da edição de quarta, lá estava, escancarado em título: “Atriz reavê documentos”. Leitores bateram os olhos no texto. Arrepiaram-se dos pés à cabeça. Choveram ligações, fax e e-mails para a direção do jornal. Mineiros que freqüentaram boa escola, todos estranharam o tropeção. A pergunta era uma só: — O que houve?   O mandamento “Deus no céu e a família na Terra”, eis o mandamento da língua. Mas muitos esquecem a lei maior. Não dá outra. Trocam o pai da palavra. É o que aconteceu com o Estado de Minas. Você sabe quem é o paizão de reaver? Acredite. Reaver é filhote de haver. Significa haver de novo (re-haver), recobrar, recuperar. Veja: A casa de Maria foi assaltada. Os ladrões levaram dólares e jóias. A polícia os prendeu. Mas não conseguiu reaver nada.   Preguiça Reaver tem um grande defeito. É preguiçoso que só. Por isso, joga no time dos verbos defectivos. Não se conjuga em todos os tempos e modos. Com ele, só têm vez as formas em que aparece o v, de haver. No presente do indicativo, por exemplo, apenas o nós e o vós ganham passagem: nós reavemos, vós reaveis. A razão? Filho de peixe sabe nadar. O presente do indicativo do verbo haver só tem v em duas pessoas (eu hei, tu hás, ele há, nós havemos, vós haveis, eles hão). Daí o tropeço do jornal. O redator pensou o que muitos pensam. O reaver seria filhote de ver. Não é. O indolente não tem o presente do subjuntivo. (Que eu reaveja? Nem pensar!) Mas exibe todas as pessoas do passado e do futuro: reouve, reouvemos, reouveram; reavia, reavias, reavíamos; reaverei, reaverão; reaveria, reaverias, reaveríamos, reaveriam; reouver, reouveres, reouvermos; reouvesse, reouvéssemos. E por aí vai. Eis exemplos do emprego do inimigo do pesado: O pai reouve a confiança do filho. Sempre que possível, ele reavia o dinheiro perdido no jogo. Ainda reaverei os pontinhos que perdi na prova. Quando reouver as jóias, Maria vai vendê-las. Se eu reouvesse minha herança, faria longa viagem pelos cinco continentes.   Sem choro nem vela Cuidado com as tentações. Reavê, reaviu, reaveja não existem. Seriam derivados de ver. E reaver vem de haver. Mas não fique triste. Eles não fazem falta. Recuperar ou recobrar os substituem numa boa. “Atriz recupera documentos” poderia ser o título da matéria que gerou tanta polêmica. Melhor não?   Xô, duplinha Nos quatro cantos do mundo, só se ouve um assunto. É a Copa do Mundo. Nas quartas e oitavas-de-final, impera uma palavra. Trata-se do mata-mata. Perdeu? Volta pra casa. Tantos fazem as malas que o regulamento trouxe uma questão lingüística. Qual o plural da duplinha? Você arrisca um palpite? a. mata-mata b. matas-matas c. matas-mata d. mata-matas A regra é simples. Se os nomes são compostos por palavras iguais, só o último ganha s: quero-queros, pula-pulas, cai-cais, tico-ticos, pisca-piscas, quebra-quebras. E, claro, mata-matas.   O passeador “Para se defender, basta os dois gigantes”, disse Pedro Bassan no Jornal Nacional de quinta-feira. Lá na Alemanha, o repórter se esqueceu do maior inimigo da concordância. Ele se chama inversão. Na ordem direta, o lugar do sujeito é antes do verbo. Mas, volta e meia, o danado dá uma voltinha. Vai pra trás do verbo. Resultado: a gente ignora o passeio e bate na concordância. Devolvendo cada macaco ao respectivo galho, temos: Para se defender, os dois gigantes bastam. Para se defender, bastam os dois gigantes.
(Coluna republicada. a autora está em férias.)