Nas entrelinhas: Não há anjos na política

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O caso Aécio Neves, ao pôr em xeque a relação entre os poderes, é um embate entre a tradição ibérica de nossa política e a tendência americanista da nova magistratura

“Se os homens fossem anjos, não seria necessário haver governos”, resumiu um dos fundadores da democracia americana (Madison, O Federalista nº 51), ao se referir aos políticos de um modo geral. A citação é oportuna porque estamos diante de um contencioso entre duas vetustas instituições da União, o Supremo Tribunal Federal e o Senado, ambas herdadas do Império (Constituição de 1824) e não uma criação republicana. Quarto presidente norte-americano, James Madison teve um papel fundamental na elaboração da Constituição e da Declaração de Direitos dos Estados Unidos, com Alexandre Hamilton e John Jay, nos ensaios de O federalista, clássico da ciência política.

Madison dedicou especial atenção à necessidade de controlar os detentores do poder, porque os homens não são governados por anjos, mas por outros homens: “Ao constituir-se um governo — integrado por homens que terão autoridade sobre outros homens —, a grande dificuldade em que se deve habilitar primeiro o governante a controlar o governado e, depois, obrigá-lo a controlar-se a si mesmo”. Para eles, as estruturas governamentais devem funcionar de maneira a evitar que o poder se torne arbitrário e tirânico. “Não se pode negar que o poder é, por natureza, usurpador e que precisa ser eficazmente contido, a fim de que não ultrapasse os limites que lhe foram fixados” (O Federalista, nº 48).

O caso do afastamento do mandato e recolhimento noturno do senador Aécio Neves (PSDB-MG), entre outras medidas cautelares decididas por três dos cinco ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Luiz Fux), transcende tudo o que já houve até agora em termos de “judicialização” da política, inclusive a prisão do então senador Delcídio do Amaral (MS), ex-líder do governo Dilma Rousseff, por obstrução da Justiça. “Estamos diante de uma crise institucional, mas será suplantada porque nossa democracia veio para ficar”, adverte o ministro Marco Aurélio, relator do caso, que votou contra o afastamento, sendo acompanhado apenas pelo ministro Alexandre Moraes.

Ontem, por 43 votos a 8, o Senado evitou o agravamento do impasse, adiando para a próxima semana a votação sobre a decisão do Supremo. Os senadores decidirão se acatam ou derrubam a ordem da Primeira Turma. A votação estava prevista, mas não houve o quórum desejado pelo líder do PSDB, senador Paulo Bauer (SC). Apenas 47 dos 81 senadores estavam presentes. A turma do deixa disso tenta empurrar o caso com a barriga, com a esperança de que o plenário do Supremo reveja a polêmica decisão, que dividiu a Corte. Avaliam que a rejeição pode provocar uma decisão ainda mais drástica do Supremo, elevando a tensão entre os dois poderes.

Americanismo

A famosa teoria da separação dos poderes de Montesquieu se baseava na experiência de “governo misto” da Inglaterra, no qual a realeza, a nobreza e o povo são obrigados a cooperar em regime de liberdade, com a divisão em três funções básicas: a legislativa, a executiva e a judiciária. Nos Estados Unidos, a ideia de um “governo misto” estava descartada pela própria Independência, o que gerou um impasse entre os constituintes, ainda mais porque uma parte da elite política local era aristocrática e escravocrata, como o próprio Madison. O que estava em questão era como garantir a liberdade do povo, refreando as ambições e interesses dos mais poderosos. Na monarquia, as maiores ameaças à liberdade partiam do Executivo; mas nos regimes republicanos, o poder se desequilibrava em favor do Legislativo.

A solução encontrada pelos federalistas foi criar um regime bicameral, no qual o Senado funcionaria como uma espécie de poder moderador das ambições da Câmara. Ao mesmo tempo,  reforçou-se o Judiciário, o mais fraco entre os poderes, porque destituído de iniciativa política, garantindo-lhe autonomia e atribuindo à Suprema Corte a interpretação final sobre o significado da Constituição. No Brasil, porém, esse papel de poder moderador somente passou a ser exercido pelo Supremo após a Constituição de 1988. Até então, desde a proclamação da República, foi anulado pelo Executivo ou usurpado pelos militares, com exceção de breves momentos de predomínio do Legislativo, como nas Constituintes de 1945 e de 1987 e nos 17 meses de regime parlamentarista do governo Jango (1961-1962).

O caso Aécio Neves, ao pôr em xeque a relação entre os poderes, é um embate entre a tradição ibérica de nossa política (da qual faz parte o patrimonialismo das oligarquias) e a tendência americanista da nova magistratura, predominante, por exemplo, no modelo de delação premiada (de 80% a 95% dos crimes ocorridos nos Estados Unidos são solucionados pelo plea bargaining, no qual o Ministério Público preside a coleta de provas no inquérito policial e faz a acusação perante a Justiça). É uma verdadeira encruzilhada político-institucional, porque em matéria de interpretação da Constituição o nome já diz: Supremo.