Roberto Carlos na curva dos 80

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Crédito: Mauricio Fidalgo/TV Globo. Roberto Carlos: trilha sonora de várias gerações.

Severino Francisco

Eu reverencio o talento de Roberto Carlos, ele faz parte inapelável da trilha sonora de minha vida, mas não engrosso o coro dos que o alçam à condição de rei. Confesso que tenho dificuldade em separar a criação do criador. Não vislumbro nele sinais de nobreza para merecer tal título nobiliárquico. Acho Roberto Carlos, humano, demasiadamente humano.

Era um adolescente, morava em São Paulo e acompanhei com entusiasmo a explosão da Jovem Guarda de Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléia, na virada final da década de 1960. Embarquei na onda, usei calça boca de sino e botei topete na testa. Devia ter uns 14 anos, comprava os discos assim que eram lançados e colava na parede os pôsteres de Wanderléia.

Logo que comecei a trabalhar em jornal, entrevistei Wanderléia, que fazia um show na Funarte, em Brasília. A conversa foi ótima. Eu não era mais o mesmo adolescente deslumbrado; e ela também havia mudado, cantava um repertório diferente, a maioria de clássicos da bossa nova.

Roberto Carlos traduzia uma nova sensibilidade urbana da juventude, os namoros no portão, as festinhas ao som do iê-iê-iê, os beijos roubados, a velocidade dos carros, mas era alienado do ponto de vista social e político, em plena ditadura militar. Nelson Rodrigues bajulou o regime de exceção até o filho Nelsinho ser torturado.

Mas Roberto me surpreendeu, em plenos anos de chumbo, ao fazer uma canção de exílio para Caetano Veloso, que me fez chorar as tais lágrimas de esguicho de que fala Nelson Rodrigues: “Debaixo dos caracóis dos teus cabelos/Uma história pra contar de um mundo tão distante…”

De maneira semelhante a Vinicius de Moraes, Roberto Carlos inventou uma língua para o amor. Ele fala de acontecimentos da alma com a linguagem direta de uma carta, de uma confissão inconfessável, de uma conversa afetiva sussurrada, de um desabafo sentimental dentro do carro em trânsito pela cidade: “Sua estupidez não lhe deixar ver/que eu te…”.

Ele tem o mesmo dom da simplicidade do conterrâneo de Cachoeiro do Itapemirim, Rubem Braga, de dizer as coisas mais inefáveis da maneira mais simples. As suas canções e versos fluem com o ritmo musical do Rio Itapemirim, que atravessa Cachoeiro. Embala a poesia direta em lindas e inesquecíveis melodias.

A minha amiga Maria Eugênia Milet, grande diretora teatral, montou uma peça com adolescentes do Cria, de Salvador, com um personagem do Cupido, um garoto que só tentava seduzir as meninas com canções de Roberto Carlos, reduzidas à frases, como se tudo fosse de sua autoria. “Por isso, estou aqui, curtindo esse momento lindo…” As meninas o enxotavam como se fosse um vira-lata piegas. Mas a plateia aplaudia de pé ao Cupido baiano.

Que bom que Roberto Carlos chegou à curva dos 80 anos. E, novamente, ele me surpreendeu. Gostei porque tomou vacina, posou para a foto e se posicionou contra o negacionismo burro: “Vacina sim”.

Mesmo omisso e alienado em momentos cruciais, sem querer, Roberto é um contestador, pois o amor é quase sempre subversivo. A versão hard core de Chico Science para Todos estão surdos renovou a canção e infundiu uma dicção punk nordestina à mensagem cristã atualíssima de Roberto Carlos em um Brasil dominado pelos gabinetes do ódio e pelos falsos cristãos, os sepulcros caiados execrados por Cristo nas santas escrituras: “Tanta gente se esqueceu/que o amor só traz o bem/que a covardia é surda/e só ouve o que convém/mas meu Amigo volte logo/vem olhar pelo seu povo/o amor é importante/vem dizer tudo de novo”.

Severino

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