Severino Francisco
Assisti ao documentário A descoberta do mundo, sobre Clarice Lispector, dirigido por Taciana Oliveira, como quem folheia um álbum de família ou a uma fotobiografia em movimento, mas com a dinâmica e a capacidade que o cinema tem de promover a convergência de linguagens. Antes de tudo, o filme é Clarice por Clarice, a sua voz e o seu ponto de vista ocupam o primeiro plano.
A narrativa é construída a partir de trechos de crônicas lidos por leitores dela e por depoimentos da própria Clarice de viva voz: “Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. O ‘amar os outros’ é tão vasto que inclui até perdão para mim mesma, com o que sobra.”
Clarice concedeu poucos depoimentos para a televisão e o que ficou mais célebre é o de uma entrevista a Júlio Lerner, para a Tevê Cultura, em que ela aparece sorumbática e pessimista. Mas Taciana utiliza um depoimento mais leve ao Museu da Imagem e do Som, graças possivelmente à mediação dos amigos Afonso Romano Sant’Anna e Marina Colasanti.
As histórias delineiam um retrato contraditório, delicado e bem-humorado de Clarice, uma tímida audaz, a um só tempo, simples e enigmática. Na vida cotidiana era simples; na vida da literatura deixava a imaginação voar livremente. Ela precisava da iluminação poética para se desvelar, mas, ciente de que a revelação do mistério era sempre outro mistério.
O documentário nos brinda com histórias deliciosas e não resistirei em antecipar algumas. Certa vez, Clarice foi assistir, com a amiga Nélida Pinon, a um evento sobre literatura, no qual os críticos José Guilherme Merquior e Luiz Costa Lima travaram um acirrado debate sobre a questão da mímese na literatura. Para Nélida, a discussão foi brilhante; mas, para Clarice, foi insuportável. A certa altura, irritada, Clarice pediu para ir embora.
Fora da sala, ela pediu a Nélida para voltar e dizer aos palestrantes que, se entendesse 10% do que eles falaram, não escreveria nenhum livro. Nélida refugou, argumentou que não valia a pena se indispor com intelectuais importantes de maneira gratuita. Mas se, de qualquer maneira, Clarice fizesse questão, que retornasse à sala e assumisse a posição pessoalmente. Clarice desistiu e contra-argumentou: “Olha, quer saber, vou é para casa comer um pedaço de frango com farofa que sobrou”.
O documentário desmistifica certa imagem de soberba associada à Clarice e a revela de corpo inteiro na angústia, na tristeza, no senso de humor, no instinto de mãe, na felicidade clandestina e no desejo de transcendência. Ao filho aflito, ela diz de maneira pungente: “Se Deus cuida até dos passarinhos por quê não cuidaria de você?”
Do ponto de vista do cinema, um dos aspectos mais interessantes é que o álbum de família interage em uma montagem de choque com as imagens das ondas do mar, tão presente na ficção e na vida de Clarice, com as ressonâncias simbólicas do inconsciente, do feminino, do indomável e da eternidade.
O que confere uma dimensão poética ao documentário. É um filme comovente, a um só tempo, desmistificador e revelador, que capta Clarice em toda a grandeza humana, demasiado humana.
PS: A descoberta do mundo está em cartaz no CineItaú no CasaPark.
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