Somos matáveis

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“Qualquer governo minimamente preocupado com a disseminação de um vírus letal estaria trabalhando arduamente para vacinar com rapidez toda a população. Não é o caso do nosso”

Paulo Baía*

Começamos a entrar num túnel escuro e fechado desde a chegada do vírus Sars-Cov-2 no país, e, em março de 2020, o comércio das cidades foi fechado, só funcionavam os estabelecimentos essenciais. A primeira fissura no pacto federativo entre Jair Bolsonaro e os governadores e prefeitos. Parecia um momento de pânico, pessoas correndo aos supermercados para fazer estoque, a corrida por álcool gel e depois as máscaras entraram em cena.

Além da discussão mundial por respiradores e que os principais insumos vinham da China e o mundo dobrava os joelhos aos pés do país asiático. Um ano depois, enfrentamos a segunda onda de forma muito mais grave com muito mais mortes diárias, numa média acima dos 3 mil. Mais cansados e com a população jogando a toalha, anestesiada, sem parecer se importar com o vírus que nos acomete, matando mais de 350 mil brasileiros, dentro das estatísticas oficiais. O túnel é longo e sem perspectiva futura a médio ou longo prazo.

Só existe uma forma de controlar a dizimação causada pela Covid-19 – vacinar toda a população em ritmo muito rápido. Os EUA estão fazendo isso com sucesso após a posse de Joe Biden. Até para o vírus parar de circular e criar novas cepas, como a que surgiu em Manaus e se mostrou mais contagiosa se espalhando pelo país. Nós não temos vacinas, por razões previamente conhecidas. O governo Jair Bolsonaro, por arrogância e negação da pandemia, não quis assinar acordos com as principais farmacêuticas como a Pfizer, a Moderna, a Johnson, e ignorou a vacina russa Sputnik.

Enfim, para completar a sucessão de incompetência, inépcia, criando brechas criminosas por ir contra a obrigação constitucional de cuidar da saúde da população brasileira, também decidiu puxar o tapete dos indianos e chineses. A dependência da China é imensa. Hoje, dependemos de insumo, o IFA, vindo da China para a produção das vacinas Coronavac, acordada pelo Instituto Butantã com o país asiático, e a Fiocruz, com a AstraZeneca, para poderem envasar suas respectivas vacinas.

Os insumos não chegam justamente pelos erros infantis e persecutórios de nossa política de relações Internacionais, nas mãos do chanceler Ernesto Araújo, por ter sido ofensiva, caluniadora e difamadora da China e de seu povo. O que causou espanto na comunidade internacional pelo prestígio do Ministério das Relações Exteriores em suas relações diplomáticas com o mundo globalizado, desde o Barão do Rio Branco até a posse de Jair Bolsonaro.

A Câmara dos Deputados, conivente com as políticas de destruição do governo Jair Bolsonaro, age como no caso do orçamento para o Censo Demográfico: se o dinheiro é pouco, meu pirão primeiro, ou seja, vamos desviar para nossas obras eleitorais. É melhor garantir a reeleição. E permanecemos reféns dos períodos eleitorais de dois em dois anos, acumulando problemas e aprofundando o fosso da desigualdade tão exposta nesta pandemia.

No caso das vacinas contra a Covid-19, a Câmara dos Deputados criou e está no Senado Federal para ser aprovado o projeto de lei que será capaz de regularizar os “Fura Filas” e os “Camarotes Especiais” para vacinar “Empresas”. Como o Executivo, através do Ministério da Saúde, não age, os lobbies foram acionados para garantir vacina para os poucos escolhidos e não por uma falsa ideia de lei divina apoiada na meritocracia.

A maioria da população que morra, em torno de quatro ou cinco mil ao dia. Podemos afirmar que nos transformamos num país sob o signo de um matadouro, bem ao estilo extrativista do agronegócio, onde poucos decidem quem deve morrer tornando a população alvo fácil de uma hashtag — #somosmatáveis.

Qualquer governo minimamente responsável e preocupado com a disseminação de um vírus letal estaria ocupado e trabalhando arduamente para vacinar com rapidez toda a população. Essa deveria ser a palavra de ordem, constituindo uma ação cívica de todos pelo apreço tanto à vida quanto à democracia. Dessa forma, torna-se premente elucidar o silêncio cúmplice da direção da Fiocruz em relação tanto à ausência quanto à demora de insumos chineses para envasar as vacinas. E, para completar, o agravamento da segunda onda amplificando a escuridão do túnel no qual estamos inseridos.

Não há como não dizer que existe uma inoperância industrial da Fiocruz para fabricação de vacinas em relação à Covid-19. Não há como não perceber que a instituição federal atua de forma conivente e em sintonia com o governo Jair Bolsonaro, diferentemente do Instituto Butantã. Vivemos sob o guarda-chuva da Coronavac, que é a única vacina efetivamente existindo no país, garantindo o mínimo de imunização, para não cairmos no ridículo dos países mais pobres do mundo por não ter até hoje, em meados de abril de 2021, vacinado nenhum cidadão brasileiro.

Não sei se é o caso para rir ou se desesperar. Apenas sinto que não há qualquer percepção de luz e muito menos se chegaremos vivos ao final da travessia. Para quem crê – quem sabe Deus ainda é brasileiro e se compadece de nós. No entanto, não há garantia de nada diante de um governo inepto, incompetente e principalmente que tem prazer em destruir, matar e deixar que o país se torne um deserto de ideias e de pessoas. É um governo onde não existe qualquer traço de cidadania, nem de apreço por sua própria população; e muitos agarram-se aos mesmos critérios antipolíticos e antirrepublicanos.

*Paulo Baía – Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ.