Por pressão do crime organizado, processos de júri popular mudam de comarca

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Para julgar os acusados de mandar matar, em 2005, a irmã Dorothy Stang, a Justiça do Pará transferiu o julgamento do Tribunal do Júri de Anapu, município do interior do estado onde ocorreu o crime, para a capital Belém, a 681 quilômetros de distância. A lei autoriza a transferência do julgamento de crimes dolosos contra a vida para uma localidade diferente daquela onde os fatos ocorreram sempre que o julgamento representar ameaça à integridade física do acusado, dúvidas sobre a imparcialidade dos jurados ou possibilidade de justiçamento do réu pela população local. A influência crescente do crime organizado tem motivado o deslocamento da competência de uma comarca para a outra para para evitar ameaças à ordem pública, o que, na lei, é chamado de “desaforamento”.

“Sem mencionar o caso concreto, já tive a oportunidade de trabalhar em processos em que o motivo do desaforamento foi a coação de testemunhas, inclusive com o extermínio de uma delas no curso do processo. Em razão disso, cria-se uma comoção (na comunidade onde houve o crime) e, por isso, se faz esse deslocamento de competência. A finalidade maior do desaforamento é garantir – uma vez que a Constituição Federal prevê que todos têm direito ao devido processo legal e um julgamento justo –, esse julgamento justo com o devido processo legal”, afirmou o juiz do Tribunal do Júri de Brasília, Paulo Afonso Correia Lima Siqueira.

O juiz do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) já recebeu a tarefa de conduzir julgamentos desaforados de outras circunscrições judiciárias (regiões administrativas) do Distrito Federal, onde as testemunhas foram ameaçadas. Mesmo não sendo uma unidade da Federação conhecida pela violência, o DF tem localidades aterrorizadas pela ação de gangues violentas, muitas ligadas ao tráfico de drogas. Luziânia, município limítrofe ao DF, foi o 14º em registros de mortes violentas no país em 2016, segundo o Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Mês Nacional do Júri

Para coibir a impunidade dos assassinos que, apenas no ano passado, vitimaram 63 mil brasileiros, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criou o Mês Nacional do Júri. A mobilização que o CNJ promove anualmente no mês de novembro, em parceria com os 27 tribunais de Justiça, tem como objetivo julgar o maior número de acusados por crimes contra a vida, sejam eles cometidos ou tentados, sobretudo assassinatos. Embora um levantamento estatístico da última edição ainda esteja sendo finalizado, vários dos julgamentos realizados em novembro passado tiveram de ser transferidos de suas comarcas de origem. No TJDFT, foram julgados 119 processos do tribunal do júri, entre 5 e 30 de novembro.

O esforço concentrado para julgamento de crimes hediondos – homicídio e tentativa de homicídio – atende as determinações da Portaria CNJ n.69/2017, que fixou novembro como o mês em que o Poder Judiciário promove o julgamento popular desses processos.

Pressão

O quadro é diferente no estado de São Paulo, onde a maior organização criminosa do país (Primeiro Comando da Capital – PCC) não raro obriga a Justiça a desaforar julgamentos. No entanto, transferir processos para outras comarcas é apenas uma de um conjunto de medidas adotadas para resguardar a integridade de testemunhas e jurados. Nas cidades do interior em que a facção tem mais influência, a lei do silêncio é imposta à comunidade quando se tenta responsabilizar réus de assassinatos. “Todos sabem quem são os jurados. Por isso, a estratégia nesses casos é o desaforamento do julgamento, quando houver coação de jurado”, afirmou o promotor público do 5º Tribunal do Júri da Capital, Rogério Leão Zagallo.

Nos julgamentos realizados na capital, os nomes dos jurados convocados para o julgamento são revelados apenas às partes no processo. No início de cada sessão do 5º Tribunal do Júri de São Paulo, o juiz responsável sorteia sete pessoas entre os convocados para compor o conselho de sentença, que absolverá ou condenará o réu levado a julgamento. O nome de cada jurado corresponde a um número que é retirado da urna do sorteio. Com 25 anos de atuação no tribunal do júri, o promotor Leão Zagallo presenciou o aumento da violência, que justifica a prudência do Poder Judiciário. O desembaraço da criminalidade em ação faz os casos parecerem anedotas.

“Em um caso, por volta do ano 2000, desaforamos um julgamento para o Fórum da Barra Funda. Mesmo assim, um réu foi arrebatado e levado embora da plateia durante o julgamento, apesar da estrutura de segurança do Fórum da Barra Funda (o maior fórum criminal da América Latina). Em fóruns menores, como o de São José dos Campos, uma vez chegou um bilhete dizendo que a pessoa sentada na terceira fileira estava armada. O agente policial que fazia a segurança do julgamento confirmou a veracidade do teor do bilhete”, disse o promotor. Hoje, o PCC se espalhou pelo Brasil, o que explica a redução de homicídios no estado de São Paulo e a expansão da mancha da violência para estados do Norte e Nordeste, segundo Leão Zagallo.

Expansão do crime

A Bahia é um dos estados que mais sofre nos últimos anos com a expansão não só do PCC, mas de outros grupos criminosos, segundo o promotor do Núcleo do Júri do Ministério Pública da Bahia (MP-BA), Davi Gallo. “A influência do crime organizado nos julgamentos do tribunal do júri se dá por conta da presença das facções originárias de outros estados – Família do Norte (FND), Comando Vermelho (CV) e PCC – além de facções domésticas na Bahia. “Vejo coação de testemunhas – e não é uma nem duas testemunhas. São muitos casos. Acontece na maioria dos casos em que o réu pertence a alguma facção. As testemunhas prestam o depoimento na delegacia de polícia. Quando têm a oportunidade de ir a juízo, algumas nos procuram para dizer que não vão”, disse o promotor.

A ação intimidadora das facções prejudica as sessões do tribunal do júri e também evita que os processos sequer cheguem a ir a júri popular. Quando a coação de uma testemunha impede que ela repita à Justiça o depoimento que deu na delegacia, nos dias seguintes ao crime, as informações deixam de ser validadas por um juiz. Assim a denúncia do Ministério Público sobre o crime não pode ser aceita pelo magistrado. Sem denúncia, o juiz não pronuncia o réu. Sem pronúncia, o julgamento não pode acontecer nem ser desaforado para outra comarca que ofereceria mais segurança.

“Depender exclusivamente das provas produzidas na delegacia enfraquece o tribunal do júri. Não vale a mesma coisa. O juiz muitas vezes não pronuncia o réu. A defesa rechaça prova não-judicializada. Os juízes atualmente andam muito garantistas. Está muito difícil fazer justiça neste país”, disse Gallo, há 14 anos no tribunal do júri da capital.

O que diz a lei

A Lei n° 11.689, de 9 de junho de 2008, atualizou os procedimentos do tribunal do júri no direito processual penal. O pedido de desaforamento de um processo pode ser feito a um órgão de instância superior pelo juiz, pelo Ministério Público ou por qualquer uma das partes. É preciso fundamentar com sólidas justificativas a necessidade de transferir a competência sobre o julgamento para outra comarca, da mesma região, preferencialmente, de acordo com o Artigo 427 da lei. A decisão de se desaforar um julgamento caberá a um órgão de segundo grau – uma câmara ou uma turma, geralmente – e não é possível recorrer dessa decisão.

O instituto deveria ser mais utilizado, segundo a juíza do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), Fernanda Moura de Carvalho. “A segunda instância conhece o instituto do desaforamento, mas ele é pouco usado, e há hipóteses em que talvez devesse ser utilizado. Quando se decidir pelo desaforamento de um processo, deveria ser transferido sempre para a comarca mais próxima, onde não houver o motivo que ensejou o pedido, isto é, uma comarca onde o júri mantenha a imparcialidade, onde o réu e as testemunhas estejam em segurança. Precisa haver uma compatibilidade entre essas questões e o direito a um julgamento pelos pares, observando-se a cultura local”, disse a juíza da 1ª Vara do Tribunal do Júri da Comarca da Capital.

Transferir julgamentos de crimes contra a vida para garantir que os acusados sejam de fato julgados revela-se ainda mais urgente diante dos 63 mil assassinatos cometidos no ano passado, de acordo o mais recente Anuário de Segurança Pública (2018), e diante da impunidade dos culpados. De acordo com as estatísticas mais recentes, familiares e amigos de vítimas de assassinatos aguardavam o tribunal do júri dar desfecho a quase 300 mil assassinatos. No final de 2017, segundo o último levantamento estatístico do CNJ, 285.261 processos relacionados a crimes cometidos contra a vida (tentativas de homicídio, infanticídio, auxílio a suicídio, mas sobretudo assassinatos) estavam pendentes de julgamento.

Caso desaforado no Mês Nacional do Júri de 2018

No Mês Nacional do Júri de 2018, inclusive, um caso de repercussão nacional foi desaforado em Garanhuns/PE para a unidade judicial pela qual responde a magistrada, localizada no Recife, a 231 quilômetros do município do agreste pernambucano. Depois de ser adiado no dia em que ocorreria, 23 de novembro, o julgamento foi realizado em 14 de dezembro, na 1ª Vara do Tribunal do Júri da Comarca da Capital. O caso ficou conhecido como os “canibais de Garanhuns”. Três pessoas eram acusadas por atuar em conjunto no assassinato de duas mulheres, que teriam sido esquartejadas e tido partes dos corpos consumidas e vendidas como alimento pelos réus. Com a comoção causada pelos crimes no município onde viviam as vítimas, a defesa dos acusados pediu o desaforamento do julgamento para evitar a parcialidade de jurados escolhidos entre os moradores da cidade. Os três réus, no entanto, acabaram condenados a penas que variaram entre 68 anos e 71 anos e 10 meses de prisão.

Para casos que envolvam organizações criminosas de porte maior, a magistrada defende, além do desaforamento, a proteção a testemunhas. A mudança no perfil do crime no estado, que deixou de contratar pistoleiros para vinganças entre famílias para atuar no narcotráfico, levou o governo estadual a criar o Programa de proteção a vítimas e testemunhas, conhecido pela sigla Provita. Entre as cerca de 40 pessoas protegidas, há ex-colaboradores do crime organizado que decidiram fazer delação premiada e, por isso, recebem ameaças dos grupos que integravam. Eles são levados para local desconhecido, com assistência de alimentação e custeio de despesas pessoais, durante um prazo máximo de dois anos. Em alguns casos, é possível mudar a identidade (RG) da pessoa.

“Nem nós sabemos onde ficam hospedadas as testemunhas protegidas do programa. Às vezes, alguns familiares também recebem proteção porque, quando a testemunha some de seu ambiente, os familiares passam a ser ameaçados”, afirmou o desembargador do TJPE Bartolomeu Bueno de Freitas, representante do tribunal no conselho do programa. Uma das quadrilhas do crime organizado, desbaratadas graças à proteção das vítimas e testemunhas, tinha agentes públicos entre seus membros e desviou R$ 50 milhões em municípios do agreste pernambucano – Limoeiro e Passira – e da Zona da Mata, Glória do Goitá.

“A Operação Carona, da Polícia Federal, resultou em praticamente 35 processos de investigação. Tivemos condenações por improbidade administrativa, desvios em recursos para merenda escolar e transporte escolar. O roubo de valores destinados à merenda escolar é ainda mais grave porque muitas crianças vão à escola nem pensando em aprender, mas em comer”, disse o desembargador Bartolomeu Bueno de Freitas, presidente da Comissão de Direitos Humanos do TJPE.

Fonte: Manuel Carlos Montenegro – Agência CNJ de Notícias