A juíza Tamara Gil Kemp, titular da Vara do Trabalho do Gama, condenou os responsáveis pela Igreja Adventista Remanescente de Laodiceia e pelas empresas do grupo Folha de Palmeiras a indenização por danos morais coletivos de R$ 200 mil, por manterem trabalhadores em situação análoga à de escravo na sede, que na época era em uma chácara no Gama
A magistrada reconheceu, na sentença, que 21 empregados eram submetidos a condições degradantes, acomodados em alojamentos precários, alguns deles coletivos e multifamiliares, sem sanitários adequados ou divididos por gênero, em descumprimento a diversas normas que regem a saúde e segurança no trabalho. O Ministério Público Trabalho (MPT) havia pedido o reconhecimento de relação de emprego para o grupo de trabalhadores, e apresentou uma lista com o Ministério Público do Trabalho (MPT) apresentou uma lista com 79 nomes.
Mas os sócios das empresas alegaram que não havia vínculo empregatício e que o trabalho realizado por todos os membros da igreja era autônomo, voluntário e se revertia em prol da comunidade religiosa. Curiosamente, diz a magistrada, nenhum dos trabalhadores reconheceu ser empregado ou mesmo aceitou a proposta dos auditores-fiscais para deixar imediatamente a comunidade e se habilitar ao seguro-desemprego. Eles se declararam “contentes” com a situação vivenciada.
Direitos trabalhistas
Na decisão, a magistrada lembrou, inicialmente, que a liberdade religiosa é um direito fundamental previsto na Constituição Federal, mas que o Estado tem o dever de interferir nos casos em que se verificam práticas ilícitas que afrontam o ordenamento jurídico, em particular, quando atingem os direitos trabalhistas, que, de acordo com a juíza, são irrenunciáveis. “O empregado não pode abrir mão de direitos de ordem pública, os quais foram criados como conteúdo mínimo obrigatório, a fim de proteger valores constitucionais referentes à dignidade da pessoa humana e ao valor social do trabalho”.
Voluntários
Após analisar o processo, a magistrada disse ter ficado demonstrado que não havia vínculo empregatício apenas com os vendedores e distribuidores de livros e pães, pois de fato exerciam suas atividades de forma autônoma – em sistema de parceria comercial – e com os missionários que, por opção de fé, somente prestavam assistência religiosa de caráter voluntário.
Relação de emprego
Contudo, nos trabalhadores que prestavam serviços nos setores de panificação, costura, limpeza e plantio de hortaliças, a juíza reconheceu a presença de todos os elementos da relação de emprego, incluindo a subordinação jurídica, que por vezes se confundia com a subordinação eclesiástica, e a onerosidade, visto que recebiam remuneração pelo trabalho prestado, mesmo que em valor abaixo do salário mínimo, após o desconto de diversas despesas de moradia, alimentação e manutenção, além dos dízimos. Pelos depoimentos, salientou a juíza, ainda que os próprios beneficiários da sentença se identifiquem como “donos do negócio”, foi constatada verdadeira organização empresarial hierárquica, sem integralização de cotas sociais ou divisão de lucros ou prejuízos.
Condições degradantes
O MPT apontou que as investigações demonstravam que os empregados trabalhavam em situação análoga à de escravo. Para a magistrada, os elementos de prova colhidos nos autos, sobre o crivo do contraditório, indicam que os trabalhadores não tinham cerceada sua liberdade de ir e vir e podiam entrar e sair da comunidade quando quisessem, permanecendo no local por vontade própria.
A magistrada explicou, contudo, que o artigo 149 do Código Penal também prevê que o trabalho em condições análogas às de escravo se caracteriza pela sujeição da vítima a condições degradantes, exatamente o que ocorreu no caso concreto, bem como a trabalhos forçados, jornada exaustiva ou a restrição de qualquer meio de locomoção em razão de dívida contraída com empregador ou preposto. “O dispositivo não tutela apenas a liberdade de ir e vir”, explicou, “mas a dignidade da pessoa humana, que deve ser garantida através do respeito aos direitos trabalhistas e previdenciários que constituem o sistema social mínimo imposto pela Constituição”.
“Quando diversas normas forem descumpridas e o meio ambiente de trabalho for severamente insalubre, sem condições mínimas para manter a higidez física e psíquica dos trabalhadores, a atividade produtiva ocorrerá em condições degradantes”. Assim, para a juíza, os empregados das áreas de panificação, costura, hortaliças e limpeza foram reduzidos a condição análoga à de escravo em virtude da submissão a condições degradantes de trabalho.
Rescisão indireta e verbas rescisórias
A juíza Tamara Gil Kemp, após reconhecer o vínculo de emprego de 21 trabalhadores, acolheu o pleito de rescisão indireta dos contratos de trabalho, com o consequente pagamento das verbas rescisórias, e determinou que os réus cumpram diversas obrigações de fazer e não fazer, no sentido de resguardar as normas trabalhistas e regulamentares sobre saúde e segurança no trabalho, além de condenar os réus ao pagamento de indenização por danos morais coletivos no valor de R$ 200 mil.
Liquidação e Execução
Tamara ressaltou, por fim, que em virtude do desinteresse dos beneficiários pela decisão, o próprio MPT, autor da ação, poderá futuramente fazer a liquidação e execução das verbas rescisórias, que ficarão à disposição dos trabalhadores ou seus sucessores por um ano. Vencido o prazo, como a indenização é pelos danos morais coletivos, os recursos serão revertidos ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) ou outro fundo beneficente a ser indicado pelo MPT, “de modo a preservar a vontade da Lei, qual seja, a de impedir o enriquecimento sem causa dos réus que atentaram contra normas jurídicas de ordem pública”.