Gentileza em tempos brutos, uma vela acesa para iluminar a escuridão, Marisa Monte dribla a madrugada e pensa no futuro com seu primeiro disco solo em 10 anos. Portas é uma caudalosa declaração de confiança criada a partir de 16 canções que recuperam a esperança com a leveza e de uma visão otimista, embora sem pieguice ou ufanismo, do que virá.
É uma pregação de coragem a partir de letras afirmativas – algumas, curiosamente, a partir de negações. “Eu não tenho medo do escuro”, canta ela em Calma; “não tenho medo do amanhã”, diz em Medo do Perigo; “lá vem o sol para derreter as nuvens negras”, canta em Pra Melhorar (com Flor e Seu Jorge).
As melodias são solares, abertas, construídas quase que inteiramente sobre acordes naturais, sem firulas, atalhos, sétimas ou nonas. É uma falsa simplicidade que levanta o astral, facilita inteiração e provoca uma reação imediata e positiva do ouvinte.
Os arranjos não economizam cordas que suavizam e metais que incendeiam, num trabalho cuidadoso. A faixa que abre e batiza o disco, Portas, vem com uma estrutura ascendente de inspiração beatle e instrumentação de combo restrito, mas que preenche inteiramente os espaços.
Mas não há limitações. Em Déjá Vu, as cordas criam uma estrutura paralela à melodia principal, como se fosse uma proteção, um contraforte, enquanto em Calma, é ressaltado o aspecto mais suingado com frases curtas e provocantes dos metais, em contraste com estruturas mais longas e preguiçosas das cordas.
Um samba no meio do caminho – Elegante Amanhecer, parceria com Pretinho da Serrinha – pode até provocar uma estranheza inicial, mas é mais interessante que fique entre baladas e até uma valsinha (Em Qualquer Tom) do que entrar como penetra no final.
Marisa Monte coloca a voz com docilidade e firmeza, evitando vibratos e a facilidade dos melismas, o que valoriza as letras muito bem colocadas e com boas sacadas nas parcerias, como Sal, com Marcelo Camelo, Portas (Dadi e Arnaldo Antunes) ou Calma (Chico Brown)
Portas é um álbum na acepção original do termo, como um agrupamento de faixas organicamente integradas, mas é também como uma coletânea de boas canções. Faz tempo que não se tinha à disposição um disco que merece ser ouvido muitas vezes, mesmo repetidamente.
É um disco para recuperar a nossa fé na música brasileira de qualidade. (Paulo Pestana)
Publicado no Correio Braziliense em 11 de julho de 2021