Diorama é uma cena reconstituída com detalhes que a tornam muito realística em um cenário com personagens tridimensionais. Costuma ser usada em museus, especialmente os de história natural, para representar como viviam os ancestrais do homem e quais eram as aparências da fauna e da flora que os rodeavam. Muitas vezes, nessas reconstituições, usa-se animais empalhados que podem conferir um aspecto um tanto macabro a toda a representação. Tem um lado fantasmagórico inevitável que, de certa forma, também fascina quem observa. Talvez seja a atratividade bizarra dessa combinação que faz da personagem Cecília, protagonista de Diorama, romance mais recente de Carol Bensimon, uma figura peculiar.
Formada em biologia, Cecília mudou-se de Porto Alegre para os Estados Unidos para fugir da própria memória. Um trauma de infância, um assassinato cometido pelo pai, imprimiu marcas na personalidade da moça que, na América, passou a se dedicar a empalhar animais destinados, na maioria das vezes, a dioramas de museus, mas também a colecionadores-caçadores. Se Cecília não conseguiu extirpar a própria dor de crescer em uma família despedaçada por um crime, ela desenvolveu enorme habilidade em usar o bisturi para retirar pele e órgãos dos bichos que empalhava. Uma metáfora que serve bem à personagem de Carol.
Parte do livro é inspirada no Caso Daudt, que chocou Porto Alegre no final dos anos 1980. Um deputado matou outro a tiros, supostamente por causa de uma traição, mas o suspeito foi absolvido por falta de provas e o crime prescreveu. “O Caso Daudt – o crime real que inspirou o livro,– ficou por muitas décadas em algum lugar da minha cabeça. É algo que faz parte do imaginário de Porto Alegre, ou pelo menos para certas gerações. Em meados de 2018, comecei a pensar em um novo projeto de romance e me veio a vontade de escrever uma história inspirada nesse crime”, conta Carol, que mora nos Estados Unidos.. “Acho que resgatá-lo era para mim quase como fazer uma espécie de arqueologia urbana, algo que gosto muito: junto com o crime, vem também a evocação de uma cidade que não existe mais, de restaurantes e lugares da noite que desapareceram, de casas que foram demolidas, etc. Além disso, com essa narrativa, eu poderia tocar em outros elementos que me interessavam: sexualidade, conservadorismo, família.”
Como um trauma sofrido em tenra idade é capaz de impactar para sempre a vida de uma pessoa? Que proporções esse impacto toma quando isso ocorre dentro da própria casa? Que dimensão a memória ocupa na lida psicológica e no tratamento desse trauma? São perguntas que Carol anotou e se dedicou a investigar para a confecção de Diorama, sobre o qual ela fala em entrevista concedida ao blog.
Diorama
De Carol Bensimon. Companhia das Letras, 286 páginas. R$ 69,90
ENTREVISTA: CAROL BENSIMON
Como você descreveria a Cecília e o que ela representa pra você?
A Cecília é alguém que sofre um trauma muito cedo, com o pai subitamente acusado de matar outro homem, mas que não se deixa vencer por isso e consegue criar para si mesma uma outra vida, um outro destino, uma outra narrativa. Ao mesmo tempo, há algo de frágil nisso, porque os fantasmas do passado sempre voltam. Eu vejo a Cecília como alguém que criou um tipo de couraça, e isso envolve mover-se no mundo com um alto grau de racionalidade e obsessão. Não à toa, ela vai fazer na vida adulta um inventário de coisas relacionadas ao crime. Ela precisa entender para seguir adiante. A relação dela com os animais demonstra muito da personalidade dela. Não é muito óbvio virar taxidermista por amor aos animais, né? E ela realmente ama a natureza e os bichos, talvez mais do que uma pessoa que trata o cachorro como um filho. Mas ela os esfola, lida com as entranhas deles, com a pele. Essa complexidade desconcertante era algo que eu queria explorar.
Como o seu romance anterior, Diorama se passa em dois tempos e em dois países. Ainda é fruto da sua estadia nos Estados Unidos?
Eu sigo morando em Mendocino, no norte da Califórnia, o lugar onde se passa O Clube dos Jardineiros de Fumaça. E não pretendo sair daqui. Foi uma mudança de vida bem significativa, de uma cidade grande brasileira para um lugarejo no meio da floresta em outro país. E essa mudança geográfica foi acompanhada de uma nova perspectiva… será que ouso dizer? Espiritual, talvez? Ou, no mínimo, de compreensão de mundo. E sim, isso acaba entrando no livro de muitas formas. A própria relação da Cecília com os animais vem da experiência de estar aqui, mais perto da vida silvestre.
A viagem é outro elemento constante no romance. O deslocamento é um elemento narrativo importante para você? Por quê?
Essa é daquelas coisas que acontecem meio sem querer. Eu nunca tive um projeto consciente de falar de deslocamento e de viagem, mas é inegável que agora a gente pode apontar para isso como um dos grandes temas dos meus livros. Acho que gosto do dinamismo que isso dá pra história, uma vivacidade, uma faísca, sei lá. Sempre gostei de livros e filmes que trazem deslocamentos. É meio que o contrário da mesmice, do cotidiano, da familiazinha de propaganda de margarina. E esses deslocamentos também vão ao encontro do meu jeito de narrar. Gosto de descrever as coisas com cuidado, dando atenção aos detalhes. E estar num lugar estranho leva, naturalmente, a uma percepção mais apurada das coisas.
As relações familiares também têm um papel central. Pode falar um pouco o que elas trazem de possibilidades para um romance?
Esse também é um tema recorrente para mim, e as possibilidades dramáticas são infinitas porque são relações quase sempre inquebráveis. Você não escolhe os pais e não escolhe os filhos, e não dá para simplesmente sair fora quando há algum conflito. No Diorama, os Matzenbacher são uma família de aparências, dá para ver que quase não há afeto entre a Cecília e os pais, sobretudo depois do crime. Mas ela estabelece um laço forte com um dos irmãos, o Vinícius, e eu acho isso bonito, o fato de eles se unirem para sobreviverem àquela família. Sou filha única, então não tenho essa experiência de primeira mão.
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