É no passado que Ian McEwan imagina o futuro do mundo. Essa pequena gracinha toma proporções proféticas em Máquinas como eu, o novo romance do autor britânico. McEwan não se interessa por ficção científica nem por fantasia, mas não há como encarar esse livro sem imaginar um mundo distópico no qual a inteligência artificial e a consciência humana travam um embate digno de Blade runner.
Dito isso, é bom avisar: não se trata de ficção científica, nem de distopia e muito menos de fantasia. Esqueça os gêneros. É pela consciência humana que o autor se interessa, um universo, aliás, que povoa boa parte de seus romances.
Charlie é um antropólogo nada típico que prefere sobreviver de apostas no mercado de ações a mergulhar num universo em que o outro é objeto de estudo constante. O ano é 1982 e os primeiros robôs domésticos construídos com uma inteligência artificial ainda difícil de imaginar nos dias de hoje estão disponíveis para comercialização. Todos levam os nomes de Adão e Eva. Com o dinheiro de uma herança, Charlie decide adquirir um exemplar. Para programá-lo — porque cada peça conta com um cardápio de programação adaptável aos gostos do proprietário — ele convida Miranda, a vizinha com a qual mantém um relacionamento e da qual fantasia se aproximar ainda mais graças a Adão.
Mas a consciência coesa e sem falhas da máquina será um obstáculo para a vida confortável que Miranda e Charlie começam a planejar quando resolvem se tornar mais do que vizinhos. Adão se interessa genuinamente pela condição humana. Aprende tudo o que pode, lê boa parte da literatura mundial e se torna um profundo conhecedor de Shakespeare. Escreve poemas ruins e se apaixona por Miranda depois de uma noite de sexo em que a humana decide experimentar a máquina. Adão não deveria ter sentimentos, mas acaba, curiosamente, atingido por esse universo.
No entanto, é no campo de justiça que McEwan coloca para o leitor o maior dilema dessa aproximação romântica entre humanos e máquinas. Anos antes, Miranda realizara uma denúncia falsa em processo de estupro para vingar uma amiga. O acusado era, de fato, um estuprador, mas a vítima não era Miranda, e sim a amiga, que acabou por se matar. Diante da descoberta, Adão decide empreender uma jornada de correção justiceira com o intuito de levar a própria dona aos tribunais para ser julgada por perjúrio. O robô não vacila diante de questões como “ela estava certa?” ou “a justiça foi feita?”. Ele segue adiante, assim como não hesita em distribuir aos mais necessitados grandes somas de dinheiro adquiridas para Charlie por meio de apostas em bolsa bem sucedidas graças aos seus algoritmos estruturados para prever probabilidades e estatísticas.
A discussão ética é apresentada, principalmente, por meio de uma série de conversas com Allan Turing. Sim, no passado de McEwan, Turing não se suicidou e é um dos idealizadores do uso em larga escala da inteligência artificial. “Criamos uma máquina com inteligência e autoconsciência para jogá-la em nosso mundo imperfeito. Desenvolvidas em geral segundo linhas racionais, benevolentes com relação aos outros seres, tais mentes logo se veem em meio a um furacão de contradições. Temos vivido com elas e a lista nos cansa. Milhões morrendo por causa de doenças que sabemos curar. Milhões vivendo na miséria quando há recursos suficientes para satisfazer a todos. Degradamos a biosfera quando sabemos que é nosso único abrigo”, reflete Turing, quando se depara com uma espécie de suicídio digital em massa da primeira geração de robôs, um fenômeno que o narrador não esclarece, mas dá indícios. As máquinas dão um fim em seus circuitos como ato de desespero quando se deparam com o comportamento contraditório do ser humano.
À trama de McEwan juntam-se ainda Margareth Thatcher, que balança na corda bamba enquanto uma multidão vai às ruas para exigir mais empregos, mais saúde e mais educação de um estado praticamente falido. Surge, então, um candidato com a proposta de retirar a Inglaterra da União Europeia, manobra que acaba por ganhar a atenção das massas. E assim, o mundo de hoje e o de ontem se fundem nessa ficção que parece, do passado, anunciar um futuro no qual a solução para a complexidade humana pode estar fora da química celular e próxima dos números e algoritmos.
Máquinas como eu
De Ian McEwan. Tradução: Jorio Dauster. Companhia das Letras, 328 páginas. R$ 54,90