José Luís Peixoto nunca teve a Tailândia como um destino dos sonhos. Foi por uma coincidência que acabou pisando no país pela primeira vez e, por escolha, pela segunda. “Sempre sonhei com a Ásia, não especificamente com a Tailândia”, conta. No entanto, em 2012, durante uma viagem a Macau, o escritor se viu diante da oportunidade de conhecer a Tailândia. Deveria por lá desembarcar para escrever para uma revista de turismo e colocou como primeiro desafio retirar da própria mente a capa de exotismo que o visitante europeu geralmente projeta no país. Deu tão certo que ele voltou uma segunda vez e, dessas viagens, trouxe o livro O caminho imperfeito, recém-publicado pela Dublinenses. “A Tailândia foi-se instalando, foi ganhando lugar. De algum modo, essa evolução está muito ligada ao modo como a Ásia foi ganhando um espaço na minha vida. Ao ponto de, nos últimos anos, ter passado, pelo menos três meses da cada ano na Ásia”, revela o autor.
Já foram várias viagens ao país e algumas amizades construídas com carinho. Hoje, o escritor se sente muito à vontade em Bangkok e em outras cidades, tem com o local e a cultura uma familiaridade que faz de O caminho imperfeito uma leitura afetiva e profunda de um país misterioso e diverso. No livro, o turista inicial se transforma em observador para enxergar além das obviedades. Peixoto parte de um fato curioso para fisgar a atenção do leitor e para justificar a sua própria curiosidade: uma notícia de jornal sobre pedaços de um corpo humano enviados pelos correios da Tailândia para Las Vegas (EUA). A partir daí, o autor mergulha em uma viagem na qual tenta compreender um universo que vai muito além dos cartões postais.
Os shows farsescos de pingue pongue em boates sombrias, a questão de gênero com as ladyboys, os mercados singulares de Bangkoc, a arte local contemporânea, a comida de rua e os templos – não aqueles descritos nos guias de turismo – conduzem algumas das experiências de Peixoto. Há sempre, e sobretudo, a figura humana em tudo isso. São as pessoas que fazem os lugares e o autor nunca perde isso de vista. “(…) apenas somos capazes de verdadeiramente conceber os outros quando nos transformamos neles”, avisa. É assim também que o país protagonista de O caminho imperfeito, é, em parte, uma construção pessoal do próprio Peixoto.
A certa altura, ele se vê envolvido em uma conversa sobre a percepção particular de uma Tailândia que nunca é a mesma para os viajantes e sempre passa por lentes carregadas da história pessoal de cada um. Isso, ele observa, vale para todas as viagens. “Viajar é, em certa medida, ir ao encontro do outro, querer conhecê-lo. Nessa percepção do outro, existem semelhanças e diferenças. Pessoalmente, acredito que devemos proteger as semelhanças, alimentá-las, e devemos respeitar as diferenças, querer aprender com elas”, diz. “Assim, não me incomoda que os outros tenham um entendimento da realidade diferente do meu. Isso acontece porque os outros têm uma história e uma perspectiva que é diferente da minha. Parece-me interessante considerar essa perspectiva, perceber se lhe encontro sentido ou não. Em caso positivo ou negativo, espero aprender algo com isso.”
Vencedor de prêmios como o Saramago e o Oceanos, o português é um fã de literatura de viagem. Em livro, escreveu sobre a Coreia do Norte em Dentro do segredo – Uma viagem na Coreia do Norte, mas é no blog José Luís Peixoto em viagem que exercita com mais frequência o gênero literário. O interesse por esse tipo de literatura surgiu há 12 anos, quando aceitou o convite de uma revista portuguesa para viajar a Budapeste e escrever sobre a capital húngara. Do convite nasceu um vínculo que existe até hoje e a constatação de que o tema fazia muito sentido. “Por um lado, adoro viajar; por outro lado, a literatura de viagens é muitíssimo ligada à experiência, que é algo que sempre valorizei muito em todo o meu trabalho. Então, dei-me conta de que a viagem tem inúmeras ligações com aspectos fundamentais da literatura e que fazia muito sentido incluir na minha proposta. Há muito tempo que escrevia sobre o que está perto, escrever sobre o que está longe era apenas um outro lado da mesma questão”, conta.
No blog, Portugal está muito presente, mas a América Latina e a Ásia também. Timor Leste, Índia, Seychelles, Turquia, Coreia do Sul, há uma quantidade de destinos lapidados por um texto que une delicadeza e observação em um misto de crônicas e memórias. Em conversa com o Leio de tudo, Peixoto revela que enxerga o blog como uma possibilidade de contato entre geografias distintas e, agora, com a pandemia que fechou fronteiras, ainda mais distantes. “Neste momento, com as limitações nas viagens, espero que este blog possa cumprir a função de lembrar-nos de todo o mundo que continua à nossa espera. Espero que possa ajudar a olharmos com esperança para o futuro. Talvez por isso este blog tenha nascido neste tempo de pandemia. É um sinal da minha própria esperança”, avisa o autor, que fala, abaixo, sobre o livro e a literatura de viagem.
O caminho imperfeito
De José Luís Peixoto. Dublinenses, 192 páginas. R$ 44,90
Entrevista: José Luís Peixoto
Por que a literatura de viagem ficou conhecida como um gênero menor e o que pode fazer dela um gênero respeitado na literatura?
Penso que essa não é uma visão generalizada. A escrita ligada com viagens tem existido desde sempre. Muitas vezes, parece-me, existe a visão redutora de que a chamada literatura de viagens é apenas constituída pelas crônicas de viagens. Se não tivermos esse preconceito, rapidamente percebemos que a escrita ligada a viagens é absolutamente canônica e fundamental, começando pela Odisseia, por exemplo.
Pode contar qual a ideia do blog, quando começou a fazê-lo e qual sua intenção com ele?
O blog nasceu de várias intenções. Uma delas foi, justamente, poder publicar textos que não se enquadravam com a linha editorial dos lugares com que colaboro na imprensa. Aqui, tenho total liberdade para escolher o formato do que publico, desde matérias de nove páginas até poemas breves. Ao mesmo tempo, é muito atraente esta facilidade de acesso. O exemplo eloquente é a possibilidade de contacto que se estabelece entre Portugal e o Brasil. Através da internet e de um blog como este é possível ser imediatamente lido em qualquer ponto do Brasil, o que dificilmente poderia acontecer de outra forma.
Quando a literatura de viagem está pronta para sair de um blog e ganhar um livro?
Neste momento, é cedo para fazer esse plano. Os textos estão vivos lá no blog. Essa é o seu meio neste momento. Quanto a livros ligados com viagens, tenho alguns nas livrarias. Também eles vão fazendo o seu percurso.
Por que escreve? E por que viaja? Só para retomar duas perguntas que você mesmo se faz no livro…
Essas perguntas, no fundo, tentam sintetizar dois aspetos de uma pergunta maior: por que vivo? Escrever e viajar são a cabeça e a ação. Escrever é a memória, é aquilo que se pensa e se sente. Viajar é estar no momento, é a experiência. A resposta a essas perguntas carece do raciocínio que se faz para chegar a elas. Também esse raciocínio é o tal “caminho”, referido no título do livro. Por isso, deixo esta questão em aberto. Quem tiver muita curiosidade, poderá encontrar essas respostas no livro.
“O turismo é como assistir a uma telenovela numa língua que não se entende. Vê-se as personagens, os seus traços físicos, ouve-se o tom em que falam e tenta-se interpretar tudo o resto”: até que ponto essa interpretação tem ligação com a realidade e como você lida com ela?
O turismo é uma atividade bastante complexa. Não creio que seja algo apenas negativo. Em certa medida, o turismo é um sinal do nosso desenvolvimento civilizacional, é um direito. No entanto, convém considerá-lo por aquilo que é realmente e não através de uma idealização. No que diz respeito à ideia presente nessa citação, o turismo é uma narrativa. Para que possa ser comercializado, para que a experiência que propõe seja atraente, o turismo constrói uma narrativa sobre o lugar e a cultura em causa. Em maior ou menor medida, essa narrativa tem ligação com diversos aspetos da história e da identidade do lugar, mas infelizmente não tem pudor de distorcer outros se isso for conveniente ao seu comércio.
Como fugir dos cartões-postais durante as viagens?
Penso que a melhor forma será realmente fazer a viagem como parte de uma tentativa de conhecer algo que, como disse antes, se afastará dos nossos valores em alguns aspetos e se afastará noutros. Creio que será muito importante treinarmos o nosso próprio olhar. O que procuramos quando visitamos um lugar novo? A resposta a essa pergunta será importante para perceber se nós próprios já levamos no olhar alguns preconceitos. Também ajudará recolhermos toda a informação que pudermos. E, claro, no tempo que vivemos, é muito importante analisarmos de onde vem essa informação. Se for idônea, científica, histórica, objetiva, terá muito mais credibilidade do que se for promocional.
“Quem insiste que tudo está visto tem um tudo muito pequeno”: essa frase se aplica a muitas realidades contemporâneas? Queria que, a partir dessa frase, você refletisse sobre o momento que o mundo vive hoje. Para onde caminhamos?
Acredito que viajar é, em si, um sinal de otimismo. Considero-me uma pessoa otimista a longo prazo. Vejo muitos problemas no mundo contemporâneo. Temos diante de nós desafios imensos. Mas acredito no ser humano e, por isso, acredito que o balanço a longo prazo é positivo. Apesar de toda a tragédia que identificamos, o ser humano prosperará. Infelizmente, será demasiado tarde para muitos.
“Onde existir distâncias há viagens que podem ser feitas. Pode-se viajar em muitas dimensões”: Na sua opinião, como vão ficar as viagens nessa nova configuração mundial após a pandemia? Que dimensões seriam essas nesse novo mundo marcado pela doença?
Uma possibilidade de viagem neste tempo e em qualquer outro tempo é justamente a escrita, a arte, a comunicação humana. Procurarmos o esforço de ler sobre algo que nos desafia, que não está na nossa área de conforto, é querer conhecer, é colocarmos em causa aquilo que nos é mais próximo. Este é um exemplo, haverá outros. Neste tempo, a imaginação é uma ferramenta poderosa.
E como ficam as fronteiras, todas elas, das físicas ao medo, na maneira de se relacionar?
Vivemos um tempo de grande incerteza. É muito cedo para termos certezas absolutas acerca do que acontecerá. Tememos que não recuperemos a proximidade de outros tempos, esta mudança foi bastante chocante, mas creio que é ainda cedo para saber com toda a garantia que não a recuperaremos de facto. Neste momento, parece-me, há que respeitarmo-nos uns aos outros e esperar.
Como você está vivendo este momento? Que expectativa tem do mundo daqui pra frente? E sobre o que faz sentido escrever a partir de agora?
Esta situação trouxe-me uma margem de tempo que não tinha planejado e que tento aproveitar da melhor forma. Terminei recentemente um livro de poesia, que será publicado em Portugal e no Brasil em simultâneo. Criei o site de que já falamos. Tenho vários projetos e, ao mesmo tempo, tento refletir sobre a minha vida e equilibrá-la. O meu desejo é de que o mundo possa fazer algo semelhante. Como disse, há desafios enormes, há injustiças horríveis, mas penso que não podemos perder a esperança num mundo melhor. Perder essa esperança é já meia vitória das adversidades. Quanto à escrita, penso que os temas não mudaram. As várias lutas do ser humano são os temas mais essencial.
“Somos os principais carcereiros da nossa liberdade”: de certa forma, o vírus nos aprisionou? Ou não?
A liberdade é um assunto muito complexo. Hoje, em muitos momentos, há uma perversão desse conceito. Liberdade não é fazer tudo o que se deseja a qualquer instante. Esse é uma ideia infantil de liberdade. Desde um ponto de vista adulto, liberdade inclui responsabilidade, consideração. Nesse sentido, o vírus trouxe algumas condicionantes, mas esse é um problema de saúde pública. Sob o ponto de vista da liberdade, existem ameaças muito mais perigosas.
Qual a maior ameaça à liberdade hoje?
As ameaças à liberdade são múltiplas. Penso que uma das maiores será esquecermo-nos de que vivemos em sociedade e, a partir daí, deixarmos de tomar o outro em consideração. A nossa liberdade depende muito daqueles que não pensam da mesma maneira que nós. Odiá-los e perder-lhes o respeito é condenarmo-nos a nós próprios ao isolamento, é limitar a nossa própria liberdade. Não ver isto é absolutamente trágico para todos.