VISTO, LIDO E OUVIDO, criada desde 1960 por Ari Cunha (In memoriam)
Hoje, com Circe Cunha e Mamfil – Manoel de Andrade
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Durante anos, Brasília pareceu condenada a um silêncio estranho. Não o silêncio do repouso ou da contemplação, mas aquele tipo de vazio que denuncia a ausência do essencial: o som das crianças. Nas superquadras, nos eixos, nos becos arborizados que cortam o Plano Piloto como artérias modernas, era raro ouvir o riso agudo dos pequenos, a gritaria saudável das correrias sem destino. De 40 anos para cá, os parquinhos, silenciaram. Os gramados, intocados; os bancos, envelhecidos na solidão. Brasília havia envelhecido junto com sua população, transformando-se em uma cidade projetada para o futuro, mas ancorada num presente sem sucessores.
Nesse contexto, o Setor Noroeste emerge como uma delicada subversão. Contra todas as previsões de que o Plano Piloto se tornaria, aos poucos, um museu habitado por aposentados e burocratas, esse bairro recém-nascido devolve, à cidade, aquilo que ela já não sabia mais reconhecer: a infância em estado natural.
Nas quadras do Noroeste, há um renascimento encantador. Parquinhos ocupados, brinquedos em disputa, gritos de alegria, brigas por turno no escorregador — os pequenos rituais da convivência infantil voltaram a existir. Até árvores são escaladas. E não se trata apenas de infraestrutura: trata-se de um clima urbano que, de algum modo, favorece o encontro, a vigilância comunitária, a normalização da presença das crianças nos espaços públicos.
Parece que um pedaço da cidade foi resgatado do passado. Em uma era de enclausuramento digital, de infância medicada, de vigilância obsessiva, ver crianças brincando ao ar livre tem algo de subversivo, quase revolucionário. O Noroeste, com seus canteiros largos, parquinhos temáticos e calçadas generosas, funciona como um laboratório do que Brasília foi e, com esforço, ainda pode voltar a ser: uma cidade construída para gente real, com vidas reais, e não apenas para carros, gabinetes e seguranças armados.
O contraste com a Brasília dos últimos anos é flagrante. Houve um tempo recente em que os espaços públicos do Plano Piloto pareciam moldados, exclusivamente, para adultos apressados e vigilantes privados. Nas quadras tradicionais, os apartamentos familiares abrigavam casais sem filhos, ou então famílias com filhos invisíveis, confinados em telas e reforçados por grades. Os pilotis haviam deixado de ser espaço de convívio e descoberta, tornando-se território de risco e suspeita. A infância foi sendo empurrada para dentro de casa ou do apartamento, para o artificial, para o monitorado. E nesse processo, a cidade perdeu parte de sua alma.
Enquanto alguns cantos de Brasília parecem redescobrir o valor da infância vivida ao ar livre, a Asa Norte segue, em certos aspectos, na contramão desse resgate afetivo. Embaixo de muitos blocos, onde outrora o som das brincadeiras infantis era sinal de vitalidade urbana, surgem pedidos para que se fechem os parquinhos — agora vistos como fonte de incômodo. Há prédios pela cidade que recebem cachorros, mas torcem o nariz para as crianças. O riso virou ruído, o grito de alegria passou a ser tratado como poluição sonora. São vizinhos que, em nome de uma paz acústica particular, pedem o silenciamento da infância alheia, como se o espaço público devesse submeter-se à lógica dos condomínios herméticos. O paradoxo é gritante: a cidade que, um dia, foi planejada para acolher famílias em comunhão, vê-se hoje pressionada por uma sensibilidade individualista, que tolera menos a presença de crianças do que de cães ou motos.
Mas nem sempre foi assim. Nos primeiros anos de Brasília, as crianças eram onipresentes — sujas de terra vermelha nos joelhos, cabeças descabeladas correndo entre os pilotis, subindo em árvores, organizando campeonatos improvisados nos becos entre as quadras.
Bete (com taco e bola), finca, pique esconde, pique bandeira, carniça, bicicleta, patins. Havia liberdade, sim, mas também havia uma confiança social no espaço urbano como extensão da casa. Os adultos sabiam que a cidade, naquele momento inaugural, pertencia também aos pequenos. Havia menos medo, menos grade, menos blindagem — e mais urbanidade. Na Brasília dos anos 1960 e 70, a infância transbordava naturalmente para as ruas, livre e despreocupada, entre as ainda pequenas e recém plantadas árvores. Era uma época em que a família ainda era a célula estruturante da vida social, e a cidade parecia ter sido projetada para sustentar isso — não para isolar ou confinar. A arquitetura, embora ousada e futurista, abria espaço para o afeto, para a supervisão sem aprisionamento, para a liberdade sem perigo. Brasília não era apenas um lugar para se viver; era um lugar para crescer. A presença de crianças não era um luxo ou uma raridade, mas uma extensão natural de uma cultura que compreendia a importância da família não como slogan, mas como o coração vivo e cotidiano da sociedade.
O Noroeste, ao reencenar esse espírito de infância, reanima também uma memória coletiva adormecida. E, embora ainda seja um bairro marcado pela desigualdade no acesso — restrito a quem pode pagar os altos preços da especulação imobiliária —, ele oferece à cidade uma provocação: é possível desenhar espaços urbanos em que as crianças existam. Não como adereços, mas como protagonistas da paisagem. Porque uma cidade que comporta a infância é, por definição, uma cidade mais humana, mais feliz, mais viva.
Talvez o som das crianças seja o verdadeiro termômetro de uma cidade que dá certo. E, nesse sentido, o Setor Noroeste não é apenas um bairro — é uma esperança concreta de que Brasília, enfim, possa voltar a crescer. Não em altura, mas em vida.
A frase que foi pronunciada:
“Era tão fácil sorrir!”
Dona Dita lembrando da infância quando a cidade nascia.
História de Brasília
Os TCB extinguiram o ônibus que fazia a ligação da Asa Norte com a CASEB. O resultado é êste: os alunos ficaram sujeitos aos transportes comuns que nunca trafegam no horário. (Publicada em 05.05.1962)





