Meu pai, meu mestre

Publicado em ÍNTEGRA

ARI CUNHA

Visto, lido e ouvido

Desde 1960

com Circe Cunha e Mamfil;

colunadoaricunha@gmail.com;

Fotos: arquivo pessoal
Fotos: arquivo pessoal

         Teilhard de Chardin escreveu que “a coisa mais gratificante da vida é ser capaz de dar uma grande parte de si mesmo aos outros.” Assim foi meu pai. Todas as pessoas que chegam para nos consolar nesse momento de dor, lembram de um pouco deixado por ele. Como lição, como carinho, inteligência, diplomacia, perseverança e como acolhimento.

         Nesses anos em que fiquei lado a lado com meu pai, na coluna Visto, lido e ouvido, ao mesmo tempo em que aprendia a manter o rigor do difícil ofício de um editorialista, crescia em mim o temor de que meu mestre e pai me faltaria, deixando-me só, como uma náufraga, à deriva, perdida no imenso mar. Aquele mesmo mar em que um dia, lá no Ceará, ele me levantava pelos bracinhos a cada vez que vinha uma onda.

         Durante o tempo em que trabalhamos juntos, aprendi a jamais misturar os assuntos do trabalho com a vida íntima da família. E a jamais usar a coluna para interesses pessoais. São muitas as lições deixadas pelo Ari Cunha. Tanto nos momentos de glória quanto naqueles dias sufocantes das provações. Quanta sabedoria nos ensinou com exemplos no dia-a-dia. Assim, prosseguimos nossa jornada. Um desacordo daqui, uma gargalhada de lá.

         Em casa, sou a filha caçula, com tudo o que isso importa. Nasci no dia da posse de Jango. Lá estava meu pai, entre a família e o jornal, buscando as notícias dos dois lados. Pequena, queria ter a mesma profissão do meu pai. Falar ao telefone e ler jornal, era o que eu dizia. Já formada em jornalismo, fui convidada a partilhar daquele espaço. O mesmo que toda a minha família acompanhou com os primeiros capítulos, vivendo a história da cidade.

        No jornal, sua assistente, sujeita a toda a carga de responsabilidade e cobranças que o ofício exige. Jamais reclamei dessa dualidade. Com isso, aprendi a não misturar as coisas e nesses últimos vinte anos em que passamos a compartilhar nossas vidas diuturnamente, pude constatar, de perto, a imensa responsabilidade que pesava sobre os ombros do meu pai para comandar o maior jornal da capital, e que tinha, sob sua direção, o maior time de jornalistas e editores jamais reunidos em uma redação.

         Além dessa tarefa hercúlea, que somente poucos suportam, cabia a ele entregar, todos os dias, a coluna, que durante muitas décadas tem sido a leitura obrigatória não só de todos os brasilienses, mas das autoridades que por aqui cumpriam suas missões.

        Tenho um orgulho enorme de saber que meu pai e mestre era do tipo de jornalista à antiga. Daqueles que sabiam, com precisão, cada ofício dentro de um jornal. Jornalistas de seu tempo e com sua responsabilidade, sem computadores e internet, sabiam fazer de tudo num jornal, do início ao fim, entrando com as notícias de um lado, pondo as impressoras para girar de outro, e entregando o produto acabado nas bancas logo pela manhã. Olha aê o Correio… cantavam os jornaleiros logo cedo pelas quadras de Brasília. Comprar o pão, o leite e o jornal era rotina de muita gente.

         Meu pai nunca foi avesso à tecnologia. Tão logo chegaram os computadores quis um, e um laptop. Gostava de aprender. Queria as novidades. Como ele dizia que os dedos tinham asas, voavam sem receios.

          Em muitas e variadas mãos, ali estava o trabalho de meu pai e de toda a equipe do Correio Braziliense. Todos o viam com respeito e admiração pela simplicidade, comportamento agregador e a rara capacidade de se sentir à vontade em qualquer lugar com qualquer pessoa.

        Houve um tempo em que meu pai era o personagem mais conhecido e respeitado da cidade. Percorrer uma pequena distância levava horas. Todos o paravam, contando casos e sugerindo notas. Usava desse prestígio apenas para defender a cidade que adotou como lar e para ajudar as pessoas que para aqui vinham se estabelecer com bons propósitos.

          Com isso, fez uma legião de bons amigos, que tinham nele uma figura magnânima. Jamais usou de seu imenso prestígio em proveito próprio, levando uma vida, à medida do possível, longe dos holofotes. Preferia a companhia dos amigos sinceros e de lugares pouco badalados, como o Café Flor do Abaeté, na 105 Sul, ou nas feiras populares, onde podia sentir os aromas puros da natureza. Falar apenas de meu pai é falar de nossa intimidade familiar e talvez isso não interesse muito. Aqui com os meus pensamentos, sei que somos uma família rara. Todos os domingos, na grande mesa, filhos, netos e bisnetos juntos, sempre em torno do alimento. Para o corpo e para a alma.

         Vamos sentir muita falta da presença do patriarca da família. Somos mais uma família de candangos que para aqui veio quando tudo era pó e esperança. Seguimos na terceira geração e vamos deixando sob essa terra vermelha nossos antepassados queridos, que deram à Brasília muito de si.

Fotos: arquivo pessoal
Fotos: arquivo pessoal
Fotos: arquivo pessoal
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