VISTO, LIDO E OUVIDO, criada desde 1960 por Ari Cunha (In memoriam)
Hoje, com Circe Cunha e Mamfil – Manoel de Andrade
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O projeto modernista de traços leves e horizontes abertos foi, pouco a pouco, coberto por uma sinfonia dissonante de latidos que não cessam — nem de dia, nem de noite. As casas, muitas delas antes silenciosas e integradas à paisagem verde do Cerrado, converteram-se em pequenas fortalezas sonoras, onde os verdadeiros senhores do território não são os moradores, mas seus cães. Os animais ocupam varandas, quintais, lajes e, com frequência, também a rua, numa espécie de domínio acústico irrestrito.
Não se trata, é evidente, de uma crítica à existência canina. Trata-se de uma crítica à irresponsabilidade. O problema não é o animal, mas o humano por trás da coleira. O cachorro late, uiva, reclama, sofre, pede atenção, denuncia abandono. E o dono, indiferente, silencia. Ou melhor, silencia para si, porque os vizinhos que lutem com o ruído incessante, nas madrugadas interrompidas, nos dias de trabalho invadidos por uma barulheira contínua que mina a paz, a paciência e, em casos extremos, a sanidade. Não tratamos aqui dos simpáticos cães que latem porque passa uma pessoa ou porque o caminhão de lixo atravessa a rua. Falamos dos neuróticos abandonados em casa.
O mais impressionante é que o fenômeno não distingue classe social. Dos bairros populares às regiões nobres — como o Lago Sul e o Lago Norte, autointitulados bastiões do bom viver —, o problema se repete. Cachorros isolados em quintais extensos, latindo por horas, ignorados por famílias inteiras que parecem ter desenvolvido uma forma avançada de audição seletiva. Tal como certos pais que não mais ouvem os gritos dos próprios filhos mimados em restaurantes ou aviões, os donos de cães perderam a sensibilidade auditiva — ou simplesmente deixaram de se importar com o desconforto alheio.
Em muitos casos, o cão, que era apenas um educado animal de guarda ou de fazenda, agora é promovido a filho substituto, herdeiro emocional de adultos solitários ou casais tardios. Em bairros de classe média e alta, esse fenômeno se manifesta com ainda mais intensidade: casas enormes, quintais ociosos e vínculos familiares rarefeitos demandam presença, e os cães — muitos, barulhentos, mimados — preenchem esse vazio com latidos que, se por um lado, quebram o silêncio da solidão; por outro, os impõem aos vizinhos. Trata-se, em última instância, de um sintoma moderno: o animal torna-se companhia afetiva, mas a coletividade paga o preço da ausência de limites, como numa metáfora viva da sociedade que prefere substituir o conflito pela acomodação ruidosa.
Essa normalização do incômodo é um sintoma. Um sintoma de uma cidade que foi sendo ocupada por uma cultura de permissividade egoísta, onde a liberdade de um termina não quando começa a do outro, mas quando o outro se cansa de reclamar. Reclamar, aliás, é inútil. Quem ousa fazê-lo, invariavelmente, recebe de volta um olhar de surpresa e desdém, como se apontar o óbvio — que o cachorro do vizinho está latindo sem parar desde às três da manhã — fosse um ato de agressão. “Mas ele é tão bonzinho…”, dizem, como se a doçura do animal anulasse o dano acústico causado por sua solidão vocalizada. Tão simples contratar alguém para educar o cão. Mas esse é um caso raro.
O problema central, como em tantos outros aspectos da vida pública brasileira, é a ausência de responsabilização. Há leis, há regulamentos, há códigos de postura municipal, todos solenemente ignorados. A fiscalização é rara, a denúncia é burocrática, a punição é improvável. A cidade acostumou-se a conviver com o barulho como se fosse parte do clima, como a seca ou o calor de setembro. E o pior: há quem considere normal. Como tudo que se repete sem freio, o anormal vira hábito.
O sujeito que se incomoda com o latido não pode reclamar: será visto como autoritário, insensível, ou pior, como “antipet friendly”. Já o dono do cão se arroga o direito de ser intocável, ainda que seu animal transforme a madrugada em suplício coletivo. No fundo, trata-se da mesma lógica que permite ao político furar fila no hospital, ao juiz exigir tratamento privilegiado no aeroporto ou ao empresário fechar a rua para a festa do filho: uma convicção enraizada de que o espaço público existe apenas para servir à vontade do indivíduo mais assertivo — ou mais barulhento. O latido, nesse contexto, é apenas o som ambiente de uma cultura em que o privilégio fala alto, e a responsabilidade, quase sempre, cala.
O que se observa, portanto, é um tipo de degradação do convívio urbano que escapa à análise imediata. É uma desorganização moral antes de ser uma desordem prática. Porque o que está em jogo não é apenas o direito ao silêncio, mas a capacidade de reconhecer que viver em sociedade impõe limites — inclusive aos afetos. Amar um animal não justifica submetê-lo ao isolamento nem permite ignorar os efeitos colaterais de sua presença ruidosa. O problema não são os cachorros: é a negligência travestida de afeto, é a falta de empatia travestida de liberdade.
Brasília se transforma não por excesso de cães, mas por escassez de civilidade. A cidade que nasceu para ser vitrine de um país moderno tornou-se, nesse aspecto, a caricatura do que há de mais arcaico: um espaço onde cada um faz o que quer dentro de seu lote, sem prestar contas ao entorno. Como se o muro bastasse para conter o som, a lei, o incômodo. E como sempre, o que falta não é norma — é aplicação. A paz urbana, como a democracia, exige vigilância constante. E, no caso dos cães, talvez um pouco de bom senso e consideração faria um grande efeito. Porque ninguém deveria precisar lutar pelo direito de dormir em silêncio na própria casa.
A frase que foi pronunciada:
“O maior medo que os cães têm é o medo de que você não volte quando sair de casa sem eles.”
Stanley Coren , psicólogo canino
História de Brasília
Afora isto, deve-se procurar saber quem fez o pichamento, porque serão, certamente, pessoas que não desejam a permanência do sr. Sette Câmara na Prefeitura por motivos que ninguém sabe. (Publicada em 4/5/1962)





