Renda básica vai estourar o teto de gastos em 2021, alertam especialistas

Publicado em Economia

ROSANA HESSEL

O aumento da desigualdade global com a pandemia de covid-19 é uma certeza. E uma das medidas para minimizar esse impacto negativo que ganha corpo entre especialistas de várias frentes ideológicas é o projeto de renda básica para a população, porque tem efeitos anticíclicos. Contudo, segundo eles, qualquer que seja a proposta que o governo apresentar, ela vai esbarrar no teto de gastos em 2021, que já está frágil. 

Os analistas lembram que não há espaço para novas despesas a partir do próximo ano, quando a regra do teto vai ter que ser respeitada, avisam economistas que participaram do webinar “Desigualdade no pós crise: a discussão da renda básica”, organizado pela Instituição Fiscal Independente (IFI), nesta segunda-feira (06/07). Uma flexibilização no teto ou a mudança na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), com novas metas fiscais, seriam algumas das alternativas para viabilizar esse novo programa que é visto como essencial para ajudar no processo de retomada da economia, que será bem lento.

 

Conforme dados do diretor executivo da IFI, Felipe Salto, a regra do teto de gastos, aprovada em 2016, não tem bases sólidas, porque é muito rígida e, quando ela se torna efetiva após os três primeiros anos em que o descumprimento era permitido, ela já se torna insustentável. “Nos primeiros anos, o teto não gerou efeito e quando vira um restrição já fica difícil de ser cumprido”, destacou. Ele lembrou que o benefício do teto foi a redução da curva de juros. “Isso permitiu o governo financiar a dívida pública com mais facilidade”, destacou.

 

Pelos cálculos de Salto, a margem entre o limite do teto de 2021 e as despesas obrigatórias previstas para o Orçamento ano que vem é pequena, de R$ 72,3 bilhões, “um patamar inferior para o funcionamento da máquina pública, estimado pela IFI em R$ 89,9 bilhões”. 

 

Na avaliação do economista Rodrigo Orair, diretor da área de Estudos e Políticas Sociais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e da economista Laura Carvalho, professora da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP), que participaram do webinar da IFI, qualquer proposta de renda básica vai, inevitavelmente, estourar o teto de gastos e uma flexibilização ou outra forma de meta fiscal precisará ser debatida pelo Congresso. Além disso, ambos defendem que uma reforma tributária que amplie a arrecadação de impostos dos mais ricos e seja menos regressiva é fundamental para arcar com os custos que estão por vir com medidas de redistribuição de renda, que estão na pauta dos debates globais para o enfrentamento não apenas da pandemia mas das novas relações de trabalho com o avanço tecnológico, eliminando uma série de profissões que existem hoje.

 

De acordo com Orair, mesmo considerando um programa que amplie o Bolsa Família, consolidando programas de distribuição de renda já existentes como abono salarial e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), como vem sendo cogitado pelo governo, o teto de gastos pode ser uma trava.  Pelos cálculos do economista, o impacto desse modelo de unificação de programas gira em torno de R$ 58 bilhões, ou 0,8% do Produto Interno Bruto (PIB). Ele lembrou que, além de pressionar o teto de gasto, essa proposta não atinge o objetivo principal que é o combate à pobreza, pois passa de uma troca gastos entre os mais pobres e vulneráveis.

 

Laura Carvalho também criticou propostas que unificam o Bolsa Família e outras medidas como abono salarial e BPC em vez de buscar receita com aumento de carga tributária sobre a renda da população mais rica e que paga menos imposto proporcionalmente sobre a renda.  “Tirar os recursos do abono e do BPC para a renda básica significa, ao meu ver, uma política que tira dinheiro dos vulneráveis para dar para quem é mais vulnerável ainda. Não torna o Orçamento mais distributivo”, afirmou.

 

A economista defendeu uma reforma tributária mais equilibrada, que tenha a preocupação em taxar mais a renda e o capital das classes mais abastadas.  “O melhor caminho é aumentar a tributação e colocar um financiamento para pagar a renda básica mais distributivo, porque há mais margem para arrecadar do topo da pirâmide. Mas o desenho do teto de gasto tem que ser revisto, porque ele não permite que se arrecade mais para uma nova despesa”, destaca. Ela ainda defendeu ainda corte de despesas, como a com salários de servidores que ganham acima do teto do funcionalismo, atualmente em R$ 39,3 mil, e que integram, em grande parte, os poderes Legislativo e Judiciário.

 

Outros modelos estudados de renda básica apresentados por Orair contemplam propostas da reforma tributária que está no Congresso, que combina uma alíquota maior do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e uma redistribuição para os mais pobres. O impacto fiscal das propostas vai até 3% do PIB, que é o custo do auxílio emergencial de R$ 600 que foi prorrogado por mais dois meses.Pelos cálculos do Tesouro Nacional, o custo atualizado desse benefício será de R$ 254 bilhões para os cinco meses, ou seja, 3,5% do PIB.

 

Contudo, a desigualdade ainda continuaria elevada com qualquer das propostas, apontou o pesquisador do Ipea.  “Mesmo se o governo adotasse um programa de renda básica universal com o custo do auxílio emergencial para todas as famílias, que é um cenário mais distante, a desigualdade medida pelo Índice Gini continuaria elevada, passando de 0,543 para 0,478, um dos mais altos do mundo”, destacou.

 

De acordo com Orair, para viabilizar financeiramente as propostas de renda básica, a reforma tributária precisaria passar por mudanças no Imposto de Renda, como a redistribuição das deduções de saúde e de educação, a revisão das isenções como dividendos e principais aplicações financeiras, e a adoção de uma alíquota marginal de 35% para rendimentos acima de R$ 111,9 mil e uma alíquota padrão de 20% na renda do capital.  Além disso, ainda contempla uma alíquota adicional de 40% para rendimentos superiores a R$ 223,9 mil.

 

Agenda radical

 

De acordo com Orair, para o teto se manter em pé, o governo vai precisar avançar em uma agenda muito agressiva em controle de gastos, como uma reforma administrativa que inclua também os servidores da ativa; uma segunda reforma da Previdência, revisando os valores dos benefícios indexados ao salário mínimo; e também mudanças nas regras do seguro-desemprego. “O teto hoje não é sustentável. É preciso uma agenda de restrição de despesa muito mais radical”, afirmou. Para ele, essa agenda dificilmente vai conseguir avançar no Congresso.

 

A professora da USP defendeu uma nova forma de meta fiscal, que tenha um programa plurianual e seja mais flexível, com um teto e um piso, como ocorre com a meta de inflação, e que possa incluir um limite para a dívida pública. Segundo ela, até mesmo um novo decreto de calamidade para suprimir o cumprimento do teto e das metas fiscais em 2021 precisará ser debatido o quanto antes. 

 

Na avaliação de Laura, nem mesmo o argumento de que o teto ajudou a reduzir os juros é sustentável. “Para mim, não existem evidências empíricas sólidas de que o teto de gastos provocou a queda dos juros no Brasil. O ambiente de incerteza global e o quadro interno de ociosidade pós-crise  explicam uma parte da história que permitiu a redução devido à inflação mais baixa”, afirmou.

 

O economista Daniel Couri, diretor da IFI, concorda que o cenário para a manutenção do teto de gastos será “bastante desafiador”. “O espaço fiscal para acomodar despesa é muito pequeno sem que o governo acione os gatilhos do teto de gastos. A regra só permite uma revisão a partir do 10º ano de vigência e, com o rompimento que aciona os gatilhos, como congelamento de salários dos servidores e do salário mínimo, não é possível criar novas despesas obrigatórias como a renda básica, seja em qual formato for, inclusive, de imposto negativo”, alertou.

 

Ao defender a importância da renda básica no país no combate ao aumento da pobreza, Laura Carvalho citou um dado do Fundo Monetário Internacional (FMI) constatado junto a 175 países. “Há evidências que a pandemia vai gerar mais desigualdade. Conforme os dados do FMI com cinco pandemias, como SARS e ebola, mostra que a desigualdade aumenta em 1,5% em termos do Índice Gini no período após essas doenças. No Brasil está clara essa gravidade da covid-19 e o colapso econômico que ela deve gerar não são favoráveis para os mais pobres”, destacou.