Botafogo Botafogo foi contra a volta aos treinos no futebol carioca. Foto: Vitor Silva/Botafogo. Botafogo foi contra a volta aos treinos no futebol carioca. Foto: Vitor Silva/Botafogo.

Das tragédias da Chapecoense e do Ninho do Urubu à pressa pela volta do futebol no Brasil: lições que os jogadores não podem esquecer na pandemia

Publicado em Esporte

Um dia, famílias se despediram de profissionais que embarcaram no voo LaMia fretado pela Chapecoense. Eles não chegaram ao destino devido a uma série de irregularidades e irresponsabilidades que culminaram no acidente aéreo, em Rionegro. Um dia, pais e mães dormiram se despedindo de adolescentes que moravam no Ninho do Urubu. Acordaram sabendo que 10 deles estavam mortos devido a um incêndio em parte do Centro de Treinamento do Flamengo, em Vargem Grande.

Os episódios são diferentes, mas há coincidências nas tragédias de 2016 e 2019. O histórico de voos fretados da LaMia e os recorrentes alertas de irregularidades no Ninho do Urubu apontaram que ambas poderiam ter sido evitadas. Os desdobramentos dos acidentes são um trailer terrível em meio à pressa pela volta do futebol no Brasil: jogo de empurra dos cartolas, fuga da responsabilidade, indiferença e até mesmo descaso com o sofrimento das famílias numa incansável batalha por indenizações.

As histórias tristes servem de alerta em tempos de pressa pela volta do futebol. Os jogadores não estão imunes ao novo coronavírus. A covid-19 também mata atletas, mas o presidente Jair Bolsonaro quer vê-los de volta aos gramados. Provavelmente baseado naquele papo de que o histórico de atleta dele o blindou da contaminação. Pois bem. Certamente, ele será o primeiro a tirar o corpo fora das divididas com as famílias em caso de óbitos no mundo da bola causados pela doença.

Parte da cartolagem — é injusto generalizar — consegue ser pior do que políticos. Trama a volta do futebol arbitrariamente na surdina, às escondidas, sem dar a mínima para a opinião das vidas que estarão em jogo dentro e fora das quatro linhas. Em frente às câmeras, porém, fazem discursos rebuscados, politicamente corretos em defesa da continuidade da paralisação.

As tragédias da Chapecoense, do Ninho do Urubu e outras pelo Brasil advertem: é preciso valorizar a própria vida, a família, antes de topar a aventura de pisar no gramado em nome do presidente da República, dos cartolas ou seja lá quem for.

Lamento que a opinião dos jogadores esteja sufocada. A falta de união da classe pelo maior patrimônio de um atleta: a saúde. Em último caso, se toparem aderir à insensatez dos patrões, eles devem revisar contratos, atualizá-los, observar com lupa cada cláusula, conferir valor dos seguros e demais direitos atrelados aos acordos, proteger as famílias juridicamente. Do contrário, arriscam vê-los entrar no time dos parentes que travam batalhas inglórias por indenizações contra departamentos jurídicos de clubes e seguradoras. Que os episódios da Chapecoense e do Ninho do Urubu sirvam de alerta contra sofrimentos que podem, sim, ser evitados. Talvez, passageiros da LaMia e hóspedes do Ninho do Urubu não tivessem noção do perigo a que estavam expostos. A pandemia é globalizada. São mais de 285 mil mortes no mundo, 4,1 milhão de contaminados. No Brasil,  — 11 mil óbitos e 169 mil testes positivos.

O acidente da LaMia tem três anos. Locatária da aeronave, a Chapecoense responde a 28 ações judiciais, entre trabalhistas e cíveis. Até o momento, são 45 acordos. O clube foi acionado 56 vezes na Justiça desde a tragédia, sendo 38 ações trabalhistas de familiares de jogadores e outras profissionais que trabalhavam para a Chapecoense ou eram prestadores de serviço. Há, ainda, 18 ações cíveis de parentes de vítimas que não tinham vínculo com o clube, como diretores, jornalistas e convidados.

A tragédia do Ninho do Urubu faz 15 meses. Segundo balanço publicado em 8 de maio no blog do colega Mauro Cezar Pereira no UOL, três famílias e meia finalizaram acordo com o Flamengo. Um dos meninos era filho de um casal separado. O pai aceitou a proposta rubro-negra. A mãe discorda e segue firme na disputa judicial.

Em 2004, o zagueiro Serginho do São Caetano morreu dentro do gramado do Morumbi numa partida contra o São Paulo pelo Campeonato Brasileiro. A viúva do jogador esperou 10 anos para receber a indenização das seguradoras. Mesmo assim, uma delas conseguiu embargar o pagamento alegando que o jogador era ciente de que tinha cardiopatia. Logo, conhecedor do risco. Os jogadores conhecem o risco da pandemia da covid-19.

A queda de braço entre a viúva do atacante Dener, Luciana Gabino, com o Vasco, por exemplo, durou 21 anos. O atacante Dener morreu em 1994 num acidente automobilístico na Lagoa Rodrigo de Freitas, Zona Sul do Rio. O caso teve solução em 2015. Luciana aceitou reduzir o valor integral da dívida e dividiu o montante em nove vezes. A indenização assinada em 2007 previa o pagamento de R$ 5 milhões para ela e os três filhos de Dener.

A dívida rolou. Com multas por atraso de pagamento e juros de correção do valor original do espólio, a dívida ainda girava em torno de R$ 1 milhão. Pelo acordo assinado à época, o Vasco pagaria 85% do valor — R$ 3,2 milhões — por meio de ato trabalhista no Tribunal Regional do Trabalho do Rio, mais os 15% restantes — R$ 1,8 milhão — em 36 parcelas mensais de R$ 50 mil. O último pagamento deveria ter sido feito em setembro de 2010. Tristes lições para que os jogadores não tomem bola nas costas. Como escrevi outro dia aqui no blog, a pressa é inimiga da perfeição e amante da irresponsabilidade.

 

Siga o blogueiro no Twitter: @mplimaDF

Siga o blogueiro no Instagram: @marcospaul0lima

Siga o blog no Facebook: https://www.facebook.com/dribledecorpo/