Nas entrelinhas: Linhas tortas

Publicado em Política

Nossa Seleção ainda não é “a pátria de chuteiras”, na definição do saudoso Nelson Rodrigues. Na verdade, precisamos de uma vitória para chamar de nossa

Depois da derrota da Argentina para a Croácia, por 3 a 0, a empolgação dos brasileiros em São Petersburgo (ex-Petrogrado, ex-Leningrado) aumentou muito. Ninguém mais anda borocochô por causa da partida contra Suíça, na qual o Brasil empatou por 1×1. A torcida brasileira curte a desgraça dos “hermanos”, aposta numa vitória na manhã de hoje contra a Costa Rica e promete lotar a Arena Zenit. Mas não se pode garantir que o jogo será como um passeio pela Nevsky Prospekt, a grande avenida traçada por Pedro, o Grande, no meio de um pântano, como início da estrada para Moscou e para Novgorod, a cidade natal do príncipe Alexandre Nevsky, que expulsou os suecos e cavaleiros teutônicos e foi canonizado pela Igreja Ortodoxa Russa.

A Nevsky Prospekt é um símbolo da modernidade, com seus 6km de extensão. Começa na Praça do Palácio, entre o Almirantado e o Hermitage, um dos mais importantes museus de arte do mundo, e termina no Mosteiro de Alexandre Nevsky. No caminho, estão o Palácio Stroganov, a Catedral de Nossa Senhora de Kazan, a Igreja do Sangue Derramado, o Café Singer, a Ponte dos Cavalos, o Museu Fabergé e o monumento a Catarina, a Grande. A importância da czarina de origem alemã na construção do Império Russo rivaliza com a de Pedro, o Grande, cujos principais méritos foram abrir o acesso ao Mar Báltico, organizar a Marinha russa e construir uma nova capital, voltada para o Ocidente, o que somente foi possível depois de derrotar o poderoso Carlos XII, da Suécia, em Poltava, na Ucrânia.

Fundada em 1703, a construção de São Petersburgo levou décadas. Em 1736, a cidade sofreu incêndios catastróficos. Para reestruturar as áreas mais danificadas, um novo plano foi estabelecido em 1737. O estilo Barroco dominou a cidade pelos primeiros 60 anos, sendo sucedido pelo estilo Naryshkin do Palácio de Inverno e pelo neoclássico. Em 1762, o departamento de construção civil definiu que nenhuma estrutura deveria ser mais alta do que o Palácio de Inverno. A cidade influenciou a reforma urbana de Paris, comandada por Georges-Eugène Hausmann, entre 1852 e 1870, e até o “Plano de Comissários”, de 1811, que serviu de base para a expansão de Manhattan, com a criação de 16 avenidas no sentido norte-sul, cortadas por 155 ruas na direção leste-oeste, o coração de Nova York. De certa forma, as reformas urbanas de São Paulo e Rio de Janeiro e o traçado de Brasília sofreram a influência da Nevsky Prospekt.

Para quem está achando que estou na Rússia, informo que voltei ao batente aqui mesmo, em Brasília. Estive em São Petersburgo em maio de 1991, ocasião na qual o Partido Comunista foi despejado do Smolny pela milícia, por ordem do prefeito Popov, um dissidente de Gorbatchov como o ex-presidente Yeltsin. Os bolcheviques estavam lá desde a transferência da capital para Moscou, sem pagar uma conta de água ou luz nem regularizar a posse do imóvel da antiga escola de moças da Corte russa, que serviu de cenário para a tomada do poder pelos comunistas, com a palavra de ordem “Todo poder aos sovietes!”.

A torcida

Tomara que os brasileiros comemorem bastante a vitória brasileira na mais ocidental das cidades russas, sem os vexames a que assistimos pela internet: as infames cenas de assédio sexual e brincadeiras de mau gosto de torcedores que abusaram da hospitalidade e da ingenuidade das jovens e dos meninos russos, tão simpáticos em relação aos brasileiros. É bom lembrar que o povo russo costuma tratar os invasores na base do ‘olho por olho, dente por dente”. E que a resistência ao cerco alemão da antiga Leningrado foi uma das mais dramáticas batalhas da II Guerra Mundial.

No Brasil, não há empolgação com a Seleção. Todo mundo está desconfiado de que Tite e Neymar não vão dar conta do recado. Faltaram garra e identidade ao time que jogou de salto alto contra a Suíça. O mal-estar generalizado que vive o país parece que contaminou o futebol, a grande paixão nacional. Nossa Seleção ainda não é “a pátria de chuteiras”, na definição do saudoso Nelson Rodrigues. Na verdade, precisamos de uma vitória para chamar de nossa. Mesmo que seja suada, dramática, mas que mostre um time heroico, disposto a lutar e a vencer.

Pra não dizer que não falei das flores do recesso dissimulado do Congresso, vale registrar que política e futebol nem sempre andam de mãos juntas. Esse mito foi criado na Copa de 1970, no governo do general Médici, com o slogan “Pra frente Brasil”. Na Copa de 2014, depois daquele chocolate que levamos da Alemanha, de 7 x 1, a presidente Dilma Rousseff foi reeleita. Neste ano, mesmo que o Brasil seja campeão, ninguém vai capitalizar o resultado, seja no governo ou na oposição. No momento, o estranhamento em relação à Seleção é muito semelhante ao que ocorre em relação aos partidos e aos políticos. Com exceção da turma de brasileiros que está na Rússia, a torcida não foi pra rua no Brasil. Mas já estamos secando os alemães e argentinos.