Graciliano e Glênio

Publicado em Crônicas

        Quem recebe um livro da Confraria dos Bibliófilos do Brasil, instituição brasiliense comandada por José Sales Neto, se sente agraciado pelos deuses. Sales é, a um só tempo, o fundador, presidente, o editor, o motorista, o supervisor gráfico e o office-boy da entidade. Cruza a bola e vai cabecear na área. Sempre publica clássicos da literatura brasileira com ilustrações de grandes artistas, em esmeradas edições artesanais.

           Em 2 000, Sales promoveu o encontro  entre dois grandes artistas brasileiros: o alagoano Graciliano Ramos e o gaúcho-brasiliense Glênio Bianchetti. Graciliano estava morto, mas não importa, o que interessa é a sintonia espiritual. São pequenos milagres que só a arte pode operar. Glênio sempre fez uma arte de sensibilidade para os temas sociais.

                Sales conseguiu autorização de uma filha de Graciliano para fazer o livro. Enquanto Jorge Amado tinha uma infinidade de publicações luxuosas, Graciliano nunca havia sido brindado com uma edição de arte caprichada.

               Vencida a primeira batalha, Sales partiu para a segunda: convencer Glênio a ilustrar Vidas secas. Como peça de persuasão, ele levou uma edição do livro Prelúdio da cachaça, de Câmara Cascudo, da Confraria, com tratamento rústico, caixa construída com fibra de juta e gravuras de Abraão Baptista. Glênio achou muito bonito e topou fazer as ilustrações, mas preferiu desenhar a fazer gravuras.

          Poucos dias depois, Sales foi chamado até a casa de Glênio e levou um susto. A série de desenhos estava quase  pronta. Era belíssima,  contundente, a palo seco. Sem deixar de ser Glênio, ele se tornou graciliânico, incorporou a alma  seca, mas cálida do mestre Graça.

             São de uma beleza pungente os desenhos de Fabiano, Sinhá Vitória, os dois meninos e a cachorra Baleia, em eterna fuga retirante. O traço humanista de Glênio tem o peso da gravura, com amplas manchas de preto em contraste com áreas brancas. Não são imagens apenas para enfeitar; elas potencializam a dramaticidade do texto de Graciliano.

             Mas ainda faltava acertar a capa. Sales mostrou uma capa elaborada por Aldemir Martins para um livro da Confraria,  Glênio achou que era bonita, mas inadequada para estampar um livro de Graciliano. Vidas secas exigia uma capa seca, crua, em preto e branco. Com impressão chapada. E, assim se fez. O livro tem a cor e a textura da terra esturricada. Ganhou uma tiragem pequena, que logo se esgotou e se tornou uma raridade. É algo que se perdeu no tempo.

         Por isso, gostaria de sugerir ao CCBB que promovesse uma grande exposição com o acervo de ilustrações da Confraria dos Bibliófilos, que publica livros de arte desde 1995. Lá, é possível encontrar, entre outras relíquias: gravuras de Marcelo Grassman para os contos de Clarice Lispector,  desenhos de Millôr Fernandes para antologia de crônicas de Rubem Braga, desenhos de Poty para A hora e a vez de Augusto Matraga, de Guimarães Rosa.

           E mais: gravuras de Rubens Gerchman para contos de Rubem Fonseca, desenhos de Maria Tomaselli para poemas de Ferreira Gullar, gravuras de Abrãao Baptista para Prelúdio da cachaça, de Câmara Cascudo; desenhos de Renina Katz para poemas de Manuel Bandeira, desenhos de Dariel Valença Lins (o ilustrador dos contos de Nelson Rodrigues em Última Hora) para A polaquinha, de Dalton Trevisan, e O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues. Enfim, esse acervo de imagens é um precioso patrimônio da cultura brasiliense e brasileira que não pode se perder.

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