Ética da negociação

Compartilhe

Severino Francisco

Confesso que eu tinha preconceito contra os americanos, mas fiquei amigo imediatamente de Everett Lee. Ele tinha duas singularidades: a defesa brava do meio ambiente e o hábito de disparar os mais cabeludos vocábulos da língua portuguesa, com um sotaque indefectível de norte-americano: “PQP, vá #%@%!”.

Logo que chegou ao Brasil, Lee tomou duas providências: 1) construiu uma casa de pedra em um condomínio, réplica da que morava no Texas; 2) convidou a secretaria e o respectivo marido para um jantar. Pediu a eles que ensinassem os palavrões mais contundentes da língua portuguesa: “Eu precisava saber. Já pensou se me mandassem para aquele lugar e eu agradecesse: muito obrigado!”.

Certo dia, apareci na casa do amigo americano: “PQP! Você veio na hora certa. Eu quero ser um ‘cínico’”. Eu disse: “Você já é o ‘cínico’, o xerife do condomínio.” Então, ele cortou: “Aí é que você se engana. Metade gosta de mim, metade eu mandei para aquele lugar”.

Eu comentei: já sei, tenho de chegar para aquelas pessoas que você mandou para aquele lugar e dizer: “É só uma forma carinhosa de se manifestar”. Lee ficou entusiasmado, os olhos se acenderam com um brilho de alegria: “PQP!!! Eu sabia que você era meu amigo!”. Ele não se elegeu porque não quis, mas era do Texas e continuou a ser o xerife do condomínio.

Em outro momento, observei que o Lee tinha dois pés de manga carregados de fruta madura: “PQP! Pode pegar um caminhão de manga, você é meu amigo.” Mas o Lee também tinha um pedido e uma proposta a fazer: “Negócio é o seguinte: eu arranjei uma namorada que morava em uma casa no Lago Norte e tem móveis muito grandes. A sua casa é grande e não tem móveis. Eu posso guardar os móveis em sua casa por algum tempo?”

De fato, eu estava construindo a casa e vendi todos os móveis. Expliquei: era preciso falar com a patroa e tenho certeza de que ela não vai gostar nada da ideia. É muito franca, não dá voltas para desconversar, diz tudo na lata. Ele replicou com decisão: vamos lá agora. Lee argumentou e recebeu um não fulminante, como eu havia previsto: “De jeito nenhum, eu gosto que as crianças brinquem à vontade. Elas vão pular em cima desses móveis e arrebentar com tudo”.

Lee não se abalou: “Deixa arrebentar com tudo, não tem importância. #&*@!!!” E, em seguida, ele deu uma aula de negociação que serviu de parâmetro para mim pelo resto da vida e que eu gostaria fosse adotado em escala ampla. É com parâmetros corretos e generosos como esse que a gente pode pacificar o país; não é com valores impostos, enfiados goela abaixo: “PQP!!! Eu sou americano pragmático, negócio não pode ser bom só para um lado. Negócio tem de ser bom para as duas partes”.

Severino

Publicado por
Severino

Posts recentes

Doutor Fontes

Severino Francisco Na semana passada quebrei um dente pré molar. Esse tipo de acidente me…

5 dias atrás

A alegria da luz

Severino Francisco Uma amiga me enviou uma mensagem de áudio com a voz radiante. Ela…

7 dias atrás

O êxtase da música

Severino Francisco Eu morei na 705 Norte, não moro mais. Se morasse, com certeza, ouviria…

2 semanas atrás

O estagiário desertor

Severino Francisco A notícia caiu como uma bomba nas redações dos jornais e emissoras de…

2 semanas atrás

O voo azul das araras

    Severino Francisco Enquanto o mundo explode, cuido de coisas mínimas que acontecem nas…

3 semanas atrás

Cataratas da 202 Norte

Severino Francisco Há dois anos, fui de carro com minha mulher para fazer umas compras…

3 semanas atrás