Ministério das Relações Exteriores (MRE) descumpre a Constituição ao negar o direito de registro de brasileiros nascidos fora do território nacional, afirma MPF/RJ. Casais tentam solucionar a questão no Itamaraty, sem sucesso, embora o STF, desde 2015, tenha reafirmado que não há dispositivos legais que diferenciem a adoção homoparental da adoção por casais heteroafetivos
O Ministério Público Federal (MPF) entrou com ação civil pública, com pedido de liminar, contra a União para determinar aos consulados brasileiros o registro de crianças nascidas no exterior filhas de casais homoafetivos por técnicas de reprodução assistida em nome de ambos os pais ou mães, desde que um deles seja brasileiro, com a emissão da certidão, ainda que na certidão local conste apenas o nome de um dos pais ou mães. (JF-RJ-5041188-15.2020.4.02.5101-ACP)
O Ministério de Relações Exteriores (MRE), pelo seu Manual do Serviço Consular e Jurídico (MSCJ), vem negando esse direito constitucional, criando uma situação jurídica incomum: filhos de casais homoafetivos por reprodução assistida estão sendo registrados devidamente com dupla filiação se nascerem em território brasileiro, mas não têm o direito assegurado caso nasçam no exterior e sejam registrados em Representação Consular brasileira, informa o MPF.
Diante do quadro, a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão pediu explicações do MR , que em resposta disse que segue o artigo 5°, item f, da Convenção de Viena sobre Relações Consulares, que estabelece, como uma das funções consulares, a de “agir na qualidade de notário e oficial de registro civil, exercer funções similares, assim como outras de caráter administrativo, sempre que não contrariem as leis e regulamentos do estado receptor”.
No entanto, para o MPF o “argumento não procede, eis que o Poder Público não pode dar cumprimento a norma alguma, nem mesmo aquelas decorrentes da celebração de tratados internacionais, se tal cumprimento importar em frontal violação de princípios e regras estabelecidos na Constituição da República de 1988, tal como na hipótese dos autos”.
“Ainda assim, não é correto afirmar que a Convenção de Viena sobre Relações Consulares impeça o registro da dupla parentalidade de crianças havidas no exterior por meio de técnicas de reprodução assistida filhas de casais homoafetivos. Isso porque a referida Convenção foi celebrada em 1963 e entrou em vigor em 1967, quando tal situação ainda era inimaginável frente ao estado da ciência da época”, argumentaram os procuradores da República Renato Machado, Sérgio Suiama e Ana Padilha, autores da ação.
Na ação civil pública, além de assegurar o registro ainda que a certidão local conste apenas o nome de um dos pais, o MPF requer ainda a modificação da redação do item 4.4.46 do Manual do Serviço Consular e Jurídico (MSCJ) do Ministério das Relações Exteriores a fim de que os consulados brasileiros no exterior passem a fazer o registro de crianças filhas de casais homoafetivos por técnicas de produção assistida no exterior em nome de ambos os pais ou mães, desde que um deles seja nacional brasileiro, com a emissão da respectiva certidão, ainda que na certidão local conste apenas o nome de um dos pais/mães.
Três filhos e duas histórias diferentes
A ação movida pelo MPF é resultado do inquérito civil público n. 1.30.001.001659/2017-35, instaurado a partir de representação de um casal homoafetivo que viu seus três filhos sendo tratados de maneira distinta pelos Consulados Brasileiros na hora do registro. Em 31 de março de 2016, eles tiveram o primeiro filho, em Katmandu, Nepal. A criança foi concebida com material biológico do representante e foi gestada por meio de barriga solidária naquele país. Na situação, não tiveram dificuldades em registrar o filho.
Porém, no dia 26 de setembro de 2016, nasceram os outros dois filhos do casal em Tabasco, México. As crianças gêmeas também foram concebidas por meio de reprodução assistida, agora com material genético do cônjuge do representante, e gestadas em barriga solidária. Dessa vez, no entanto, o Consulado Brasileiro em Tabasco negou o pedido de registro do nascimento dos bebês em nome de ambos os pais. A representação consular brasileira fundamentou a negativa argumentando que deveria seguir à risca as certidões de nascimento locais que traziam apenas o nome do cônjuge do representante, narra a Procuradoria.
O representante e seu cônjuge ainda argumentaram que em situação análoga o Consulado Brasileiro em Katmandu, Nepal, havia adotado solução diversa, registrando o irmão mais velho dos bebês em nome de ambos os pais de modo a salvaguardar direitos fundamentais da criança e do casal. No entanto, seus argumentos não foram acolhidos. Os recém-nascidos foram ao fim registrados somente em nome do cônjuge do representante, sem referência e sem o nome do outro pai, explica o MPF.
“A adoção de soluções distintas para situações idênticas por parte das representações consulares do Brasil em Katmandu e em Tabasco resultou em uma situação anti-isonômica entre os irmãos. Enquanto o filho primogênito do casal goza de todos os benefícios e da ampla proteção advinda da dupla filiação, os irmãos mais novos foram alijados do direito à filiação e nome em relação a um de seus pais. Outrossim, consta ainda na representação que o casal tentou solucionar a questão junto ao Itamaraty por meio de sua advogada, sem sucesso. Para justificar a negativa, o Ministério das Relações Exteriores respondeu, em síntese, que não poderia efetuar o registro porque, em assim proceder, estaria violando a legislação mexicana”, narram os procuradores.
Entretanto, o estado de Tabasco não proíbe a gestação por sub-rogação, diferentemente dos argumentos apresentados pelo MRE. Questionados, responderam ao MPF que “em exame detido da legislação mexicana de fato indicava não haver proibição expressa ao registro de nascimento de menores havidos por método de substituição de gestação”. No entanto, alegaram seguir a Convenção de Viena para justificar a negativa de registro.
“A interpretação realizada pelo MRE do arcabouço jurídico atinente ao tema impediu também o registro com dupla filiação de outras crianças brasileiras nascidas no exterior, filhas de casais homoafetivos”, alerta o MPF.
Para o Estado Brasileiro, a união homoafetiva é entidade familiar, merecedora de especial proteção nos exatos termos do artigo 226 da Constituição da República, tal como já assentou o Supremo Tribunal Federal (ADI n. 4.277 DF e na ADPF n. 178).
A partir da decisão, o tratamento da matéria evoluiu para a garantia dos demais direitos fundamentais que defluem naturalmente do reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar: possibilidade de casamento e constituição de união estável diretamente em cartório, possibilidade de adoção por casais homoafetivos, reconhecimento de parentalidade sócio-afetiva, registro de dupla parentalidade, etc.
No ano de 2015, ao julgar o Recurso Extraordinário 846.102 que tratava especificamente a questão da adoção por casal homoafetivo, o Supremo Tribunal Federal reafirmou não haver dispositivos legais que diferenciassem a adoção homoparental da adoção por casais heteroafetivos.
Veja a íntegra da acp.