Adriana

Uma carta de amor e eu

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Por Adriana Bernardes

O cursor piscou na página mais de uma centena de vezes antes de as primeiras letras colorirem de preto a tela branca à minha frente. Nem vou perder tempo explicando o porquê. O que vem a seguir não segue lógica, nem métrica, não se mede nem se explica, não se escolhe e nem se reprime. Apenas se vive. Como toda mineira que se preze, me permitirei dar voltas até chegar ao ponto central deste texto, assim como se desfiam os causos à beira do rabo do fogão à lenha lá pras bandas das Gerais.  

Pois bem, aqui no jornal, de tempos em tempos, jornalistas se acotovelam diante de uma mesa pequena — 79,5 cm por 53,5 —, espremida entre dois armários e uma pilastra de concreto, para disputar livros. Semana passada, dormi no ponto. Quando vi, muitos já voltavam para suas mesas tagarelando como maritacas, com dois ou três títulos debaixo do braço. Me juntei aos retardatários. 

Contrariando a máxima “não se julga um livro pela capa”, foi exatamente o que fiz. A ilustração de traços finos, ora sinuosos, ora geométricos, desenhados em preto, visitando as diferentes nuances do cinza, imprimindo, às vezes apenas um borrão, arrancou-me da tentativa de ser indiferente à primeira impressão. Eis, aqui, meu primeiro contato com Uma carta de amor escrita por mulheres sensíveis, de Brittainy C. Cherry & Kandi Steiner.

 Levei Uma carta de amor na bolsa por quatro ou cinco dias, sem passar os olhos em uma única página. Só nos encontramos, de fato, numa manhã gelada de segunda-feira, no estacionamento do clube onde faço remo, enquanto ecoava no volume 30 a trilha sonora que embala meus dias ultimamente, não por acaso batizada Monotemática — 99,999% romântica.

Na dúvida entre seguir cantando (e errando a letra de) Can’t take my eyes off you e começar a leitura, fiz os dois, intercalando performances efusivas apenas no refrão. 

A apresentação da obra é uma sequência de afagos. O convite para fechar os olhos e imaginar como seria receber a carta do ser amado, ou a forma empática como as autoras sugerem ao leitor um reencontro com sua essência tantas vezes massacrada, ou quando propõem um brinde “a quem se entrega aos sentimentos, às almas corajosas que escutam a batida do próprio coração e não têm medo de perguntar a outra pessoa se ela sente a mesma batida”. Tudo é afeto. 

Devorei as primeiras 15 ou 20 páginas em questão de minutos, embalada por Marisa Monte, U2, Titãs e Sinatra. Quase perdi a hora de jogar a canoa no Paranoá e sentir o sol, o frio e o vento do outono na minha pele, assanhando meus cabelos, agora azuis (esverdeados, talvez). 

Com a precisão de cirurgiãs,  Brittainy e Kandi trata de questões contemporâneas e atemporais com delicadeza e profundidade. É assim em O circo da ansiedade:    

“…Por favor, não caia —

pé esquerdo

pé direito

capturando o olhar de todos.

Inspire, expire.”

 

Em Garota descolada, que não consegui transcrever apenas parte do texto, toda a força, exuberância e potência feminina, um deleite em tempos de opressão e extermínio de mulheres no Brasil e no mundo. Não, não cabemos mais em caixas, não nos basta viver em gaiolas!

 

“Não sou a garota descolada, 

aquela de quem é fácil gostar, 

que é fácil de amar, 

que é fácil de largar. 

 

Sou a garota dos olhos selvagens, 

do coração errante, 

do espírito livre. 

 

Quanto mais forte você segurar, 

mais ansiarei por escapar.” 

 

Trágico, pode soar clichê à primeira leitura. Mas é uma ode ao amor próprio. E o que dizer de Gesto grandioso

 

“Eu me apaixonei por ele em momentos banais —

quando gargalhou forte, 

quando me perguntou que boné usar, 

quando cantou um pouco desafinado, 

quando pousou a mão na parte interna da minha coxa

enquanto dirigímos pela estrada de terra.  

Não foi um gesto grandioso, 

nem uma demonstração épica de paixão.

Simplesmente existi no mesmo espaço que ele 

e me dei conta de poder permanecer bem ali, 

sem fazer nada especial, 

e ser extremamente feliz pelo resto da vida”.

 

Não sei se há jeito mais certeiro para falar sobre os amores da vida real. Os nascidos onde menos se espera e alimentados pelo cotidiano, lindamente cantado por Chico. 

De cabo a rabo, Uma carta de amor escrita por mulheres sensíveis é isso: retratos de amores incríveis e possíveis, de desilusões, de potências femininas, de dores do corpo e da alma. É afago e reflexão. É suspiro e soluço. É a vida como ela é!

Uma carta de amor escrita por mulheres sensíveis

De  Brittainy C. Cherry & Kandi Steiner. Record, 96 páginas. R$ 54,90