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A mágica da literatura oral

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Mergulhar na narrativa de Pança de burro é como dar um salto para um universo marcado por paisagem e linguagem muito peculiares. Nascida em Tenerife, nas Ilhas Canárias, Andrea Abreu propõe ao leitor deslocamento caloroso para um cenário à sombra do vulcão no qual duas meninas vivem uma adolescência tão árida quanto a paisagem.  

Shit, a narradora que o leitor passa a conhecer apenas pelo apelido, e Isora são melhores amigas em ambiente não alcançado pelo glamour turístico da região. As desigualdades, a religiosidade, a superstição e o machismo rondam as meninas, mas é no espaço da amizade que elas se encontram. 

Shit e Isora caminham juntas nas descobertas da adolescência. São ousadas, atrevidas, corajosas e curiosas  em um mundo povoado por mulheres moldadas em costumes rígidos. Isora tem lá suas malvadezas e pratica  a  transposição de limites com alguma perversidade. Conversas pornográficas no “méssinger”, excrementos escondidos na venda da avó tirana, uma tristeza capaz de embrutecer e a capacidade de manipular a amiga ajudam a construir a complexidade da personagem. 

A intimidade entre as meninas é o caldo que faz crescer a narrativa de Andrea Abreu, autora de 27 anos preocupada em trazer para o romance os modos orais e a fala de Tenerife. O resultado é o trabalho de linguagem extremamente sofisticado de Pança de burro. A história se passa em bairro ficcional inspirado na zona norte de Tenerife. É, a autora explica, uma ilha dentro da ilha, uma espécie de zona rural montanhosa quase desconhecida até mesmo para o resto dos habitantes do local. 

Ali ocorre o fenômeno Pança de burro que dá título ao romance: um acúmulo de nuvens baixas que parece interferir nas variações de humor dos habitantes. “É também um fenômeno psicológico que afeta a vida das pessoas que vivem debaixo dessas nuvens. Todo o romance está atravessado por essa força, esse fenômeno. Os personagens vivem subjugados por esse poder do céu cinza”, avisa Andrea. Todos esses elementos formam parte substancial da vida dos personagens, além de marcar fortemente a escrita da autora. “Eu realmente me sinto como uma habitante de um território com uma ferida colonial aberta, uma forte conexão com a terra que habito, a gente, os costumes e, sobretudo, com a natureza. Minha intenção é que minha escritura seja tangível, física, animal, orgânica, em conexão com essa sensação que tenho de ser parte natural da ilha”, diz. 

Andrea Abreu não foi uma menina leitora. Não havia livros à sua volta enquanto crescia, no seio de uma família de agricultores, sucateiros e faxineiras. A primeira formação literária veio das histórias orais. A poesia, a música tradicional e as narrativas de terror contadas pelo pai formaram o arcabouço literário sobre o qual ela se moldou como autora. “Inconscientemente, fui aprendendo a arte de contar contos de tanto escutá-los. Havia de tudo nessas histórias: bruxas, demônios do monte, duendes, seres estranhos. Eu devo tudo à literatura oral e não suporto quando as pessoas a consideram como de segunda classe. É uma ideia classista que nega a cultura das famílias humildes”, acredita. Para Andrea, a máxima expressão literária reside na  literatura oral, popular, gênero do qual ela busca se aproximar ao escrever. Pança de burro ganhou o prêmio Dulve Chacón, foi traduzido em 16 línguas e levou a autora à lista dos melhores escritores com menos de 35 anos da Granta. Foram mais de 70 mil exemplares vendidos e uma comparação com Elena Ferrante que acabou por tornar a menina das ilhas uma celebridade da literatura espanhola.  “Nos meus livros, a intenção é aproximar-me dessa grande literatura que não pode ser aprisionada em palavras escritas, porque vive dançando na cabeça e na boca das pessoas”, avisa. 

Entrevista: Andrea Abreu

Como a história da amizade entre Shit e Isora surgiu para você?

Eu queria contar a história de uma relação entre duas amigas  na qual  não estivessem claros os limites entre a amizade, o desejo sexual e o amor romântico. Creio que muitas de nós tivemos amigas com as quais desenvolvemos dinâmicas de dependência muito fortes, às vezes doentias, e ao mesmo tempo bonitas. Queria falar desse tipo de relação e isso para mim era quase como uma sensação, como uma ideia impronunciável, me custava colocar isso em palavras. Então senti a necessidade de escrever um romance somente para me aproximar um pouco dessa sensação da qual falo. A ideia veio por meio de um poema de quatro versos no qual uma menina de 10 anos comia e sua melhor amiga a olhava por trás. 

Qual o desafio e a mágica de escrever da perspectiva de uma narradora infantil?

Da minha perspectiva como leitora, pessoalmente, me encantam as histórias de meninas. As vozes narrativas infantis são maravilhosas porque elas nos compenetram com uma capacidade perdida: a de ver o mundo com olhos renovados, distantes dos automatismos e dos lugares comuns. Também creio que as pessoas das Ilhas Canárias são sedentas de encontrar representações. Mas sigo sem saber os motivos exatos de tudo isso. 

 

Qual a importância da oralidade no romance?

Muita. No meu livro, a forma e o conteúdo se entrelaçam e nenhum dos dois é mais importante que o outro, eles se necessitam mutuamente e uma coisa não seria possível sem a outra. Eu tinha claro que, da mesma maneira que em outros territórios hispanofalantes há autoras que escrevem suas variantes em espanhol, eu podia fazer o mesmo com a minha própria variante. Cresci acreditando que não se podia escrever em “canarês”, que minha forma de falar e de pensar não eram adequadas. Depois, com muito esforço e com a ajuda de companheiras, amigas e escritoras das Canárias, entendi que isso era fruto de dinâmicas coloniais que persistem hoje em dia. Logo, também penso que os personagens têm que ser críveis e que ainda que não sejam iguais às pessoas, devem parecer com elas. O recurso da oralidade me permite dar maior credibilidade a meus personagens e a minhas histórias. Penso que seria estúpido não aproveitar esse material tão rico que tenho á disposição. 

 

Pança de burro

De Andrea Abreu. Tradução : Livia Deorsola.

Companhia das Letras, 186 páginas. R$ 69,90