Um escritor retorna à Argentina após oito anos de autoexílio na Alemanha. É uma volta dolorida, para acompanhar os últimos momentos de um pai moribundo, um pai cujo passado se mistura à história recente de um país marcado por regimes ditatoriais. O escritor busca a própria identidade ao mergulhar nas reflexões sobre quem seria a figura à qual chama de pai.
Se trata, primeiro, de um jornalista que resistiu à opressão. E as consequências disso estão na dinâmica familiar. Patricio Pron não tem problema em falar de O espírito dos meus pais continua a subir na chuva como um livro sobre sua própria história. Mas isso não é importante, porque ali há também a história de milhares de famílias argentinas cujas trajetórias foram atravessadas pela ditadura militar. Acontece que o romance não é apenas uma história do passado, é também uma constatação entristecida do perfil de duas gerações: uma, que lutou pelo que acreditava, outra, derrotada pela falta de um combate. A derrota, no entanto, não é privilégio geracional e sim algo compartilhado pelas duas gerações. Mesmo que tenha havido luta, ela não resultou exatamente em vitória para os combatentes. Nesse meio de caminho se encontram o narrador e seu pai.
“O espírito dos meus pais continua a subir na chuva nasceu da necessidade pessoal de contar uma história que estava calada durante anos, a de minha família e a minha própria, assim como das perdas que tivemos que enfrentar durante a ditadura argentina. Mas também surgiu do convencimento de que eu não estava sozinho em minha condição de filho de ativistas políticos e que tinha que escrever o livro para quem são meus pais, para quem compartilha minha história e para quem tem sua própria história para contar”, explica Pron.
Radicado na Espanha, o autor é filho de ativistas que lutaram contra a ditadura em uma organização clandestina. Durante anos, guardou essa história como projeto para um livro e só publicou quando os pais, finalmente, aprovaram a ideia. Sua escrita direta, sincera e, eventualmente, pontuada por uma trágica ironia, conduz o leitor por uma trama que nada tem de leve. A morte, o fracasso, a fragilidade humana e sua condição atávica que ajuda a embaçar a busca de identidade pairam o tempo todo na narrativa. Ao ler uma frase marcada pelo pai em um livro, o narrador imagina ali um epitáfio. “E me ocorreu que, se eu soubesse quem eu era, se a névoa criada pelos remédios se dissipasse por um momento para que eu pudesse saber quem eu era, também gostaria de ter esse epitáfio, mas depois pensei que eu não tinha realmente lutado; algo ou alguém já tinha nos infligido uma derrota, e nós enchíamos a cara ou tomávamos remédios ou desperdiçávamos nosso tempo de mil e uma maneiras tentando chegar depressa a um final que talvez fosse indigno, mas com certeza era libertador”, diz, enquanto reflete sobre sua geração e a de seus pais. Dali, ele conclui que, no fundo, o fracasso é mútuo. Sobre literatura, o narrador de Pron, que é mesmo o autor, revela um certo desencanto. “Que um escritor possa ser argentino e ainda estar vivo é uma descoberta bastante recente e ainda me causa assombro”, se espanta. Abaixo, o autor de 42 anos conta como literatura e história se mesclam na sua produção.
O romance traz uma perspectiva geracional?
Sim. Os fatos narrados, dos quais nosso pais foram atores diretos (no tempo em que nós éramos atores indiretos, vítimas ou testemunhas), são narrados inevitavelmente a partir de uma perspectiva da minha geração, que a diferencia da de nossos pais e que cresceu em um período em que se acreditava que as ideologias estavam mortas e as utopias não eram necessárias, uma época de ceticismo e frivolidade que nos forjou, embora não o desejássemos.
Como a literatura argentina contemporânea se relaciona com a memória?
Desde já, a questão da memória ocupa um lugar importantíssimo na literatura argentina contemporânea: a verdade é que não poderia ser de outra forma, se considerarmos a importância dos feitos trágicos do passado recente do país. Não desprezo a literatura testemunhal sobre o período, mas tampouco creio que a literatura tenha esgotado as formas disponíveis para tratar o assunto. Nesse sentido, me sinto especialmente interessado pelo que, com esse tema, fizeram recentemente Alan Pauls, Félix Bruzzone, Mariana Eva Pérez, Lola Arias e Albertina Carri, entre outros. Parece que eles devolvem à memória uma atualidade que essa não se perde realmente, mas que tende a ser esquecida quando as formas abordadas se reduzem a dois ou três modelos.
Qual o papel da literatura em relação à ditadura?
Penso que a literatura, enquanto repositório de possibilidades individuais e coletivas, constitui uma resistência a toda forma de ditadura e opressão.
Seria correto falar em autoficção, no seu caso já que, tecnicamente, o livro é um romance de não-ficção?
Autoficção é um termo importante e enormemente potente cujo uso reiterado nos últimos tempos esvaziou seu conteúdo. Como acontece sempre, é preciso pensar em novas ferramentas para abordar os textos, e também para abordar o meu texto.
Qual o papel da verdade na literatura? Há um compromisso com a verdade na tua escrita?
Possivelmente, cada novo livro redefine esse papel, fazendo essa relação entre verdade e literatura o assunto (secreto) da obra.
Qual o lugar do escritor e dos livros na história?
O que seus autores e leitores designarem, a meio caminho entre o esquecimento e as formas sempre mutantes da memória.
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