Sessão de Setembro de 2021, em casa do autor Miguel Sousa Tavares realizada por Maus da Fita
Assim nasceu Pablo, um octogenário transferido de um asilo com outros idosos porque não há lugar para os mais velhos nos hospitais e o governo decidiu que os poucos leitos seriam destinados aos que têm mais chances de cura, ou seja, os mais novos. Pablo é um espanhol que viu, menino, a família lutar contra a ditadura de Franco e, logo depois, se tornar refugiada numa França ocupada pelos nazistas. A condição de revolucionários despedaça ainda mais o núcleo familiar do personagem, que acaba num campo de concentração com o pai. Quando a guerra acaba, apenas ele sobreviveu.
Duas histórias correm em paralelo no romance, dois fios narrativos que acabam por se encontrar. Inês é uma médica que perde um grande amor para o vírus e decide se embrenhar na linha de frente de combate à covid-19 ao descobrir que os idosos, por decisão não oficial do governo, não são prioridade durante a crise sanitária. É na casa de repouso na qual vive Pablo que ela se instala. Não há médicos designados para essas instituições e a chegada de Inês é um sopro de humanidade num momento em que a crueldade parece ser a regra. “Pablo é um personagem que acaba a vida descrente do ser humano porque assistiu a todas as bestialidades possíveis, a guerra civil espanhola, irmãos contra irmãos, resistiu ao campo nazi e depois é apedrejado pelos próprios conterrâneos. E o crime dele é ser velho e estar doente. Até então, apesar de tudo, ele amava viver. Acaba da única maneira que podia acabar”, avalia Sousa Tavares.
O romance traz uma bela reflexão sobre os rumos da sociedade em tempos de crise e estado de emergência. Num momento em que leitos faltam e respiradores não são suficientes, em que o mundo pára mas os serviços essenciais precisam continuar, em que muitos se arriscam para outros se salvarem, a humanidade não hesita em contabilizar quais vidas seriam descartáveis. Pablo, testemunha de um século de barbáries, e Inês, que troca o conforto de um hospital de apoio por uma linha de frente, são lembranças de que o valor dos seres humanos não pode ser medido em anos de vida ou função exercida. Último olhar é um romance sobre o envelhecimento, a morte, a mesquinhez humana, mas também sobre o amor e a liberdade.
A obra chega às livrarias exatamente 23 anos depois do lançamento de Equador no Brasil. O romance, uma longa história de amor entre um governador e uma inglesa durante o período colonial, fez enorme sucesso, foi traduzido para 10 idiomas e teve mais de 400 mil exemplares vendidos. É um livro bem diferente de Último olhar. “Há uma frase que cito no começo do livro, de uma cientista portuguesa que diz que esse é um vírus bonzinho porque só mata velhos. Essa frase resume toda a crueldade com que, no início, se olhou para a situação. Descartar quem não era útil e seria um peso, essa barbaridade é que eu quis testemunhar no livro. Esse episódio em Espanha é um ponto extremo. Houve uma espécie de demência onde as pessoas se portavam como na idade média. E, de repente, nós, que éramos civilizações tão aparentemente organizadas e informadas, mostramos o pior de nós mesmos”, diz Miguel Sousa Tavares, em entrevista ao Leio de tudo.
Muito se falou sobre a sociedade sair melhor da pandemia depois de um sofrimento coletivo. O que acha disso?
Não saímos melhor. A única coisa que saiu melhor disso foi a ciência. A ciência foi a única coisa surpreendente porque se conseguiu vacinas muito mais depressa do que pensávamos. Isso foi feito contra a negação de pessoas como Bolsonaro ou Trump, criminosos em grande escala. Quando você tem dirigentes políticos que põem à frente da salvação dos cidadãos crenças contras os cientistas e técnicos, do tipo machistas e idiotas, acho que não há perdão. As redes sociais fizeram com que nunca tantas pessoas soubessem tão pouco sobre tantas coisas. As pessoas ouvem boatos e tomam como verdade e não aprofundam, não se informam. Qualquer populista consegue abrir caminhos em redes sociais. Multiplicam algoritmos e formam opinião pública. O que é perigoso porque, se a democracia é formada, pela vontade da maioria e ela está deturpada, temos um problema.
Você diz que essa pandemia foi também moral. Como?
Enquanto civilização nunca tínhamos sido confrontados com uma ameaça planetária. A certa altura, vi pessoas informadas que pensavam que ia ser o princípio da extinção da raça humana e foram confrontadas com uma situação limite entre ética, filosofia e política. É como estar no Titanic que vai afundar: percebe-se o fundamento moral de cada pessoa. Quem é que vai ser salvo primeiro, quem vai manter a decência. E assim como houve coisas bonitas, houve coisas muito feias. Em Portugal, conheci um médico que trabalhou 42 dias sem descanso num hospital de covid-19, mas também tivemos um número de baixas médicas que foi o dobro do ano anterior. A grande maioria fugiu. Numa situação limite, fomos confrontados com o que realmente é valioso, e o resultado não foi nada bonito.
Quais são os heróis da pandemia para o senhor?
Os que estiveram mesmo a combater. Os que souberam morrer com dignidade. Muita gente, heróis anônimos, o caminhoneiros que continuaram a levar comida aos supermercados, lixeiros que continuaram a limpar as ruas, os que não puderam parar e arriscaram estar doentes
Como a literatura pode dar conta disso?
Eu nunca tinha escrito o que se pode chamar de literatura manifesto, foi a primeira vez que fiz porque achei que era preciso. Larguei um outro romance que estava a escrever porque senti o impulso de escrever sobre isso. Foi a primeira vez que achei que tinha que por minha literatura a serviço de qualquer coisa que pudesse ficar para o futuro. Achei que era útil escrever para que ficasse registrado para as pessoas saberem como vivemos e como nos comportamos. A literatura também pode servir para isso, para alertar as consciências. Já escrevi sobre coisas horríveis, mas num passado distante, e a história apaga as coisas, apaga os crimes. E, afinal, a maldade que está na natureza humana não desaparece.
Um dos temas do livro é o envelhecimento. Perdemos a dimensão, enquanto sociedade, do que é envelhecer?
Depende. Esse último ano e meio decidi retirar-me do trabalho. Vou voltar agora outra vez e com muitas dúvidas, porque estar um ano e meio fazendo apenas uma coluna para o jornal, uma vez por semana, foi muito bom porque ficamos atento a muitas coisas, ficamos a saber de coisas que não tínhamos tempo para ver, fica-se a pensar em muitas coisas. Não tenho medo da morte, mas medo de morrer mal e envelhecer mal. Mas, se você consegue amar as coisas da vida e ter mais tempo para elas, ser mais atento a elas, não há angústia e apenas fruição dessas coisas. Mas é preciso ter condições para isso.
Mas e enquanto sociedade?
Temos um problema de fato, inclusive financeiro, que é como pagar a segurança social, que é cada vez mais cara. É um problema grave aqui na Europa, temos um problema de envelhecimento aceleradíssimo. Em 10 anos, teremos praticamente uma pessoa ativa para uma que não está ativa e isso é insustentável. Não sei como se resolve. Acho que os franceses são loucos porque o que eles querem não é sustentável. Estão a envenenar o seu próprio futuro. Eu encaro bem a velhice, gosto muito do tempo que estou a viver, todos os dias agradeço aquilo que tenho, sinto, faço, penso. Não tenho saudade nenhuma do passado. Se a pessoa se mantiver intelectualmente ativa, vai tirar partido da vida como nunca tirou antes. Não trocava a idade que tenho e o que faço pelo tempo de estudante. No fundo, a história da vida é saber gostar da vida em cada momento e curtir o que ela nos dá. Hoje em dia, não tenho nenhuma noção de urgência nem de coisas irremediáveis. E nunca tenho pressa,
Último Olhar
De Miguel Sousa Tavares. Companhia das Letras, 272 páginas. R$ 69,90
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