O afeto poderia ser uma arma para enfrentar a vida na concepção da escritora Carola Saavedra. Mas Anna, Maike e a “avó” não sabem disso no início de Com armas sonolentas, quinto e mais recente livro da autora. A descoberta desse afeto passa por compreender a si mesmas e é nesse sentido que podemos classificar o livro como um romance de formação.
A autora gosta da ideia. “É um romance de formação porque eu quis usar esse gênero, que é um gênero normalmente muito masculino. O romance de formação é sempre o rapaz que se torna homem. Eu queria trabalhar com o gênero masculino, mas com personagens femininas. Queria falar do tornar-se mulher, tornar-se sujeito para mulheres”, explica.
Com armas sonolentas tem estrutura de novela: são três histórias aparentemente independentes, mas interligadas por um mistério comum às três personagens. O narrador não dissimula. Não esconde a ligação entre elas, mas também não a explicita. Não há jogo de suspense para manter a atenção do leitor porque a autora sabe muito bem conduzir uma narrativa sem truques. É, na verdade, a autodescoberta das personagens o traço marcante da história.
As personagens são muito jovens quando tem início a narrativa. Anna, uma atriz iniciante e não muito bem-sucedida, consegue escorregar para dentro de uma festa do cinema dentro do Copacabana Palace, estratégia para ser vista. Sai de lá casada com um diretor alemão pelo qual não nutre grande afeição, mas no qual deposita a esperança de um sucesso futuro. O sonho vira pesadelo enquanto a personagem se esforça para esquecer quem é e de onde veio.
Eu estava muito preocupada em falar de mulheres, de temas como mãe e filha, raro de aparecer na literatura escrita por mulheres. Queria falar dessa relação tão difícil e delicada, sobre questões do feminino. A história foi surgindo porque eu mesma estava interessada em estar dentro dessa história
Na Alemanha, a jovem Maike não sabe ao certo por que se sente tão deslocada. Criada em família abastada, com pais aparentemente amorosos, a menina parece pertencer a outro contexto, assim como a avó (única identificação fornecida pelo narrador), herdeira de uma história clássica no Brasil. Entregue pela mãe a uma parente para se tornar empregada em casa de madame, engravida do filho do patrão e dá à luz uma menina que cresce entre dois mundos, sem saber exatamente ao qual pertence. Há muita dor nas personagens, mas também uma incompreensão de seus lugares no mundo. Dói pavimentar o caminho quando não se sabe onde ele começa, assim como transpor a fenda que separa o presente do passado não é tarefa fácil.
“Elas estão naquela juventude diante da vida e vão vivendo tendo muitas experiências e se tornando adultas. De certa forma, nesse processo de se tornar adulta ou mulher vem o tornar-se sujeito. Todas as personagens se fazem a pergunta `quem sou eu?´”, diz Carola. A pergunta a leva a refletir sobre sua própria trajetória. Com armas sonolentas, ela admite, é seu romance mais autobiográfico. Nascida no Chile em 1973, a autora veio para o Brasil aos três anos, com os pais, em fuga da ditadura de Pinochet. Morou 10 anos na Alemanha, alguns outros na França e na Espanha. Ganhou um prêmio APCA de melhor romance por Flores azuis e um Rachel de Queiroz com Paisagem com dromedário. Este último é uma experiência epistolar no qual narra, por meio de 22 mensagens, o relacionamento de um casal de artistas plásticos. Em 2010, esteve entre os convidados da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que este ano homenageia Hilda Hilst, sobre a qual Carola escreveu em pós-doutorado e em texto crítico para relançamento da obra completa de ficção.
Que é escritora, ela não tem dúvida. Mas as dúvidas quanto à própria identidade sempre a rondaram. “Por muito tempo me fiz essas perguntas `quem sou eu?´, `onde estão minhas raízes?´, `de onde eu vim?´ e `como construir uma identidade?´. Hoje, pra mim, é claro que identidade é uma coisa que você constrói e pode ser a literatura, um país, uma língua”, acredita. Uma exposição da artista Ana Maria Maiolino puxou o fio do novo romance. Em uma fotografia, mãe, filha e avó apareciam ligadas por um fio. “Pra mim, essa foto foi super importante. Eu queria falar dessa geração de mulheres e de certas heranças que passam de mãe pra filha. No caso do livro, é o abandono que vai passando de mãe pra filha sem que elas saibam muito bem o que está acontecendo”, explica. Uma abandono que também é exílio em Com armas sonolentas.
Com armas sonolentas
De Carola Saavedra. Companhia das Letras, 270 páginas. R$ 54,90