Depois de ganhar o Jabuti em 2016 na categoria Contos com o livro Amora, a autora gaúcha Natália Borges Polesso, que participa do Livre! Festival Internacional de Literatura e Direitos Humanos no domingo (19/08), acaba de concluir um romance de formação. Ela ainda não pode falar muito sobre o livro, mas adianta que é a história de uma menina da adolescência à idade adulta e que ela precisa lidar com uma condição. A personagem tem epilepsia e os conflitos gerados a partir desse fato são essenciais em sua vida. Para a autora, a construção dos personagens é algo fundamental.
Em Amora, Natália incorporou histórias ouvidas aqui e ali para construir as mulheres dos contos, que narram encontros e desencontros de casais lésbicos. É uma temática presente na obra da artista, mas que ela questiona constantemente. “Não acho que escreva uma temática lésbica, nem sei se isso existe, o que seria isso? Porque a nossa vida, a vida de pessoas LGBT, é uma vida normal. Será que a temática lésbica é o conflito do amor? Porque isso pode estar presente em qualquer pessoa”, reflete. O tema deve surgir no encontro com os leitores, marcado para domingo (19/08), às 16h, no Parque Ecológico do Bosque, em São Sebastião. Natália conversou com o Leio de tudo sobre o tema, mas também sobre o Brasil contemporâneo e a literatura feita fora dos eixos. Moradora de Caxias do Sul (RS), professora, pós-doutoranda na Universidade de Caxias do Sul (UCS) e pesquisadora de geografias lésbicas na literatura, ela acredita que os livros podem ser instrumentos de diálogo em tempos de enfrentamentos políticos. “Simpatizei muito com a ideia do festival porque é um espaço para falar de literatura e questões políticas neste momento que vivemos,um mundo divergente em termos de sexualidade e ideias”, diz Natália.
Entrevista: Natália Borges Polesso
Como você olha para esse momento do país? Quais são seus medos e suas esperanças e qual o papel da literatura nesse cenário?
Tenho pensado muito sobre isso e confesso que estou com um pouco de medo com os rumos que nossa política pode tomar. Não penso especificamente em algum candidato absurdo no poder, mas no modo como essas figuras legitimam certos discursos de ódio que não deveriam estar em exposição e não deveriam ter essa força. Elas estão em lugares em que são olhadas e isso é muito preocupante. Acho que a literatura, como produção e como discussão, tem um papel de ampliar as leituras de mundo. A literatura tem esse grande poder de te deslocar, de te colocar no lugar do outro, de pensar nas autoridades e mesmo de te pensar como o outro. Esse é o grande trunfo da gente, colocar na roda esse deslocamento para ter um olhar um pouco mais empático do mundo.
Quando você ganhou o prêmio, sofreu algum tipo de ataque?
Nunca recebi ameaças por causa do livro nem por causa do meu posicionamento enquanto pesquisadora e escritora, até porque acho que, nos lugares que a gente circula, a gente tem uma certa rede de proteção de outras pessoas que conhecem o trabalho e compartilham de algumas ideias. Também sou cronista de um jornal local aqui de Caxias, o Jornal pioneiro, e aí é complicado. Agora mesmo tenho escrito sobre visibilidade lésbica e aí tu recebe algumas coisas. Claro, são coisas virtuais, mas as pessoas estão ali comentando coisas absurdas. A crônica foi sobre lesbocídio e as pessoas fizeram piadas, falaram em lesmocídio, disseram que essa mulher não tem uma louça pra lavar. Levaram a questão muito rasamente e isso me preocupa um pouco, porque as ameaças vêm de algum posicionamento.
E como você lida com isso? Qual a solução? Continuar escrevendo?
É o que o Millôr diz: pra gente não dar asas aos idiotas. Eu não respondo, não olho os comentários porque me faz muito mal, mas continuo escrevendo porque acho que tem muito mais gente que talvez precise ler aquilo, que tem certa identificação com o que estou escrevendo e isso é muito mais importante do que focar nesses discursos de ódio.
E como você tem visto essas discussões no Brasil? A gente tem avançado?
Eu acho que, por um histórico de movimentos sociais no Brasil e participação universitária, nos últimos anos a gente teve uma crescente de participação universitária e formação de movimento social mais pensante. Ainda estamos vendo os frutos disso nas reivindicações que essas movimentos sociais asseguram em termos de direito, porque a gente tem perdido coisas. A gente não perde as coisas sem discutir, sem debater. Mas a gente está perdendo muitas coisas. Nesse sentido, as reivindicações dos movimentos estão muito forte.
O que temos perdido?
Com esse governo Temer a gente teve grandes perdas em termos de educação, pesquisa e saúde, inclusive, com congelamento das verbas. Toda essa questão do agronegócio está sendo debatida sem dar atenção para coisas a longo prazo. Mas acho que perdemos, principalmente, na questão da educação. Perdemos verba de pesquisa, de educação e de formação de profissionais para continuar a fazer com que a gente tenha seres pensantes no mundo. Acho que isso é o mais grave.
A temática lésbica é uma presença rara na literatura brasileira?
Quando eu ganhei o prêmio com Amora, as pessoas começaram a me convidar para falar sobre literatura lésbica e eu comecei a estudar e procurar. A princípio, eu iria lidar com quem são as autoras lésbicas na história do mundo e como chegar nas contemporâneas. Mas, para minha grata surpresa, não consigo nem lidar com o corpus que tenho encontrado em literatura contemporânea. É muita produção. A questão é a circulação, o mercado, outros problemas. Mas é uma presença muito forte, especialmente dentro da poesia e dentro desses grupos de slam.
Onde está essa produção? Não está nas grandes editoras…
Realmente, não está nas grandes editoras. Ela está muito nesses pequenas grupos de slam, nas pequenas editoras. Essa força vem desses grupos. A circulação acontece um pouco alternativamente ao grande mercado editorial. Mas está chegando em quem tem que chegar. Espero que isso aumente.
O grande mercado ainda não se apropriou dessa produção como um nicho?
Acho que o mercado se apropriou desse nicho quando a gente fala em literatura LGBT, em literatura gay, produzida por homens, numa questão mais ligada às masculinidades. Acho que isso é mais presente. Mas essa é uma questão universal de discussão do cânone literário. Temos muito mais homens brancos dentro em todas as esferas, tanto na escrita quanto na editoração e mesmo livreiros, que são as pessoas que vão escolher os livros. Mas, quando a gente tem mulheres interessadas em estar nesses lugares, a coisa acontece bem diferente. São os caminhos macro e micro do funcionamento da cadeia do livro.
Você se considera uma escritora periférica, tanto geograficamente quanto tematicamente?
Não sei se consigo responder numa fala. Acho que tenho que escrever um ensaio sobre isos. É uma ótima questão. Afinal, o que é a periferia? Às vezes, eu falo “ah ganhei um prêmio” e as pessoas falam, “não você ganhou o Jabuti”. Então não posso dizer que sou uma escritora marginal. Porém, não moro em São Paulo ou Rio, moro em Caxias do Sul, não é nem em Porto Alegre. As protagonistas que coloco na minha escrita não são algo central da literatura. Então a gente tem que pensar em modos de abordar essa ideia de periferia.