Crédito: Fernanda Sucupira/Divulgacao. Julián Fuks. Crédito: Fernanda Sucupira/Divulgacao. Julián Fuks.

Julián Fuks: “Brasil não refletiu sobre seu passado autoritário”

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Julián Fuks acredita que a multiplicidade pode fazer da literatura um discurso importante no cenário sociopolítico e esse pode ser um dos temas do debate de hoje – Democracia em tempos sombrios: o romance como resistência – no Livre! Festival Internacional de Literatura e Direitos Humanos. O autor paulistano divide a mesa com Beatriz Leal, de Mulheres que mordem.

Fuks é um nome que tem circulado bastante pelas listas de premiações literárias do Brasil e do mundo de língua portuguesa. Em 2016, ele ganhou o Jabuti por A resistência, também premiado em 2017 com o José Saramago. Autor de À procura do romance, finalista do Jabuti, do Portugal Telecom e do São Paulo de Literatura, e de Histórias de literatura e cegueira, também finalista do Jabuti e do Portugal Telecom, tem sido uma voz reveladora e contundente na literatura brasileira.

Filho de argentinos que fugiram da ditadura e se exilaram no Brasil, o escritor de 37 anos causou um certo alvoroço no meio literário com seu A resistência. No romance, ele fala sobre o irmão adotado e sobre sua própria busca de identidade. Uma busca que é eterna e o leva, incessantemente, a se surpreender ao constatar não ser nem tão argentino quanto queria nem tão brasileiro quanto seria o natural. É autoficção assumida – um gênero ao qual muitos autores contemporâneos brasileiros têm resistência, embora o pratiquem sem pudores.

Agora, Fuks escreve um romance sobre a ocupação de um prédio por grupo de sem-tetos. Deve terminar em 2019. O novo trabalho formará um díptico com A resistência. “São dois romances interligados com uma mesma voz narrativa, que é esse narrador parecido a mim mesmo, ainda o elemento autoficcional, mas agora é para narrar um outro e a situação de uma ocupação no centro de São Paulo”, avisa.

Livre! Festival Internacional de Literatura e Direitos Humanos

Mesa: Democracia em tempos sombrios: o romance como resistência. Com Julián Fuks e Beatriz Leal. Hoje, às 16h, no Parque Ecológico dos Jequitibás.
Esquete poética: POEMARIO – com Meimei Bastos, às 15h15

Entrevista: Julián Fuks

Você está em um festival de literatura e direitos humanos. Qual o papel da literatura nessa cena?
Tenho uma compreensão de que a literatura participa desse mundo. Ela não retrata nem se propõe simplesmente a pensar a si mesma ou se pensar como arte, ou se pensar como forma. Há uma literatura que se propõe a falar do outro, a fazer uma aproximação à alteridade e essas noções se rupturas e sofrimentos de quebras de direitos alheios. A literatura pode muito bem se inserir nesse contexto, ser mais um discurso a pensar os rumos de um país, as questões mais urgentes que a gente tem visto.
Quais são as questões urgentes para você hoje?
Acho que a gente vive num país com uma situação de ruptura democrática muito forte. Nosso sistema político entrou em xeque e o país tem vivido também um crescimento da xenofobia, do preconceito, de perseguição de minorias, de perseguição de pensamentos discordantes, isso tudo está muito forte, muito presente, e acho que é preciso, em alguma medida, encontrar respostas, encontrar maneiras de diálogo e aproximações que nos tirem dessa situação.

Isso está mais forte aqui que em outros locais da América Latina?
A gente vê o crescimento da xenofobia ao redor do mundo, da intolerância. É uma conjuntura que se vê por toda parte. No Brasil, isso tem um elemento suplementar que foi justamente a ruptura democrática. Em outros países da América Latina, você vê certa inflexão à direita dos governos. Na Argentina, por exemplo, tem um governo tendente à direita, mas ali se deu de uma maneira mais democrática, foi votado, eleito pela população. No Chile há mais uma oscilação, porque eles não têm reeleição, então tiveram um lado, outro lado. É outra circunstância. No Brasil, a coisa se tornou mais grave, sem dúvida, porque houve a ruptura, o golpe, uma quebra da escolha popular. E o que veio à tona muito fortemente é que não só há um pensamento que é de intolerância e perseguição à diferença, como também um desinteresse pela democracia. E boa parte da população, e da institucionalidade também, está pouco afeita, pouco afeita a essa noção de democracia e, assim, pouco afeita à noção de liberdade também.

E de onde você acha que vem isso. Por quê?
É difícil traçar essa origem, esse histórico. O que tenho feito é justamente pensar como o fato de não ter havido uma reflexão profunda do passado autoritário brasileiro, de não ter havido propriamente um apanhado crítico do que foi a ditadura militar para boa parte da população, faz com que a ditadura seja, muitas vezes, aceita. A gente percebe, por exemplo, um retorno desses ímpetos de querer a volta dos militares ao poder, essa noção de que a ditadura tinha alguma qualidade que se perdeu no período democrático brasileiro. Tudo isso, me parece, vem de um profundo desconhecimento de um país que não pensou a si mesmo. Para mim, alguns elementos centrais da ditadura brasileira permanecem preservados na realidade atual. O ímpeto de censura, de perseguição às vozes discordantes, uma defesa da tortura, a atitude de uma polícia muito violenta e repressora, que resulta, praticamente, na mesma violência militar de outros tempos, são elementos centrais da ditadura militar que hoje se preservam no nosso contexto. E mais: há um desejo, por parte da população, de que isso seja retomado.

A literatura pode ter alguma função nessa revisão crítica da qual você falou?
Acho que sim. A literatura, obviamente, não vai ser nenhuma panaceia, a literatura não se propõe a resolver nenhum problema social político. Ela é mais um discurso a participar de um pensamento. A gente vê, em outros lugares, a força que tem a literatura para pensar um passado, para refletir certa circunstância histórica. Para refletir sobre as ditaduras militares, a literatura latino-americana foi muito forte, fez isso com muita expressividade. No Brasil, houve isso em alguma medida, mas não tanto quanto poderia ter havido. Sinto que, recentemente e não por acaso, justamente com esse recrudescimento político, tem surgido muito mais narrativas sobre o passado autoritário brasileiro que ajudam a pensar também um presente autoritário.

O que seria a pós-ficção?
Encaro a autoficção como um aparte, um entre vários fenômenos de aproximação entre ficção e real, ficção e discurso historiográfico, ensaístico, filosófico, político. Por isso passei a falar em pós-ficção. Pós-ficção pressupõe o momento em que o ato ficconal se torna problemático, se torna arbitrário. Muitos escritores se veem nessa situação de não mais conseguir inventar histórias, inventar personagens, atribuir nomes, criar ficções a partir desse gesto. Aquilo que nunca deixa de existir na nossa sociedade, que é a literatura, encontra essa outra maneira, e essa outra maneira é essa aproximação a outros discursos.

A autoficção é uma realidade hoje na literatura brasileira?
Sinto que tá acontecendo com essa forma algo que está acontecendo com todas as formas literárias: um momento de inovação e ascensão, de predomínio, que se torna bastante poderosa e um certo declínio posterior em que uma forma repete a outra, não encontra muita fertilidade e vai se diluindo como novidade formal. A dúvida é saber em que momento a autoficção se encontra hoje. Se o que a gente tem é ainda uma ascensão dessa forma, que é ainda inovadora, ou se a gente já está num momento em que se tornou um discurso hegemônico e que, portanto, tem diversos elementos muito positivos, ainda obras marcantes, mas já pode continuar a anunciar um momento de repetição e diluição.