08/02/2013. Crédito: Editora AlfaGuara/Divulgação. Escritor Ricardo Lísias. 08/02/2013. Crédito: Editora AlfaGuara/Divulgação. Escritor Ricardo Lísias.

O ser humano diante do fim no relato de Ricardo Lísias

Publicado em consciência, covid-19, democracia, entubado, lançamento, literatura, pandemia, Sem categoria, tragédia

Ricardo Lísias começou a dar forma a Uma dor perfeita ainda no leito da UTI. Internado com covid-19 durante duas semanas entre março e abril de 2021, o escritor tinha acesso a um telefone celular por meio do qual trocava mensagens com a mulher, alguns amigos, a mãe e o editor Marcelo Ferroni. Deste último veio a sugestão de pensar em um livro. Quando teve alta da UTI e foi para o quarto, Lísias passou então a tomar notas para o relato. Graças às enfermeiras, conseguiu papel, caneta e uma pasta para dar início à escrita. 

Depois de quase ser entubado, de sentir dores terríveis nas pernas e de vivenciar o drama da incerteza diante da morte, uma constante em ambiente de UTI, Lísias sentiu que havia material para um livro, mas não só. “Segundo os médicos, ele me ajudaria a organizar um pouco as ideias, pois para muitos que contraíram a versão mais forte da covid-19, há problemas, inclusive, de memória. Por isso seria um bom trabalho, a organização de um livro”, conta. “O livro me ajudou a recuperar muitas questões perdidas ou confusas para mim durante a internação, sobretudo durante o acesso de dor dos primeiros dias. A depressão também atinge muitos pacientes logo depois da alta. Eu não tive nada parecido e tenho certeza de que se deve ao livro, já que tive um trabalho muito intenso nos meses seguintes.”

Escrito em primeira pessoa, como boa parte dos romances de Lísias, Uma dor perfeita também traz a concordância do autor quanto a ser um livro autobiográfico. O detalhe é importante: apesar de beber em fontes reais para escrever O céu dos suicidas (2012) e Divórcio (2013), o escritor sempre insistiu serem essas narrativas ficcionais. “Eu de fato não sei como chamá-lo, não sei qual classificação adotar”, explica. O livro está registrado como um romance, mas Lísias acredita que isso é apenas uma consequência da exigência de uma categoria no momento de registrar o material. “Eu próprio já não penso nesses termos. O termo ficção, por exemplo, não me atrai muito, o que obviamente também faz com que o termo não-ficção tenha o mesmo destino. O que posso dizer é que Uma dor perfeita é o livro que fiz. É um livro”, diz.

Deitado na cama da UTI, consciente do privilégio de ter conseguido um lugar em um bom hospital particular em momento de pico da pandemia, o narrador mergulha na própria condição humana. A dor, o medo, a revolta, a raiva e a compaixão se misturam na maneira como descreve a própria situação, mas também a daqueles que transitam ao seu redor: os enfermeiros sobrecarregados física e emocionalmente diante de pacientes que morrem todos os dias, o avô que se despede da neta antes de ser entubado, a senhora que exige luxo e cloroquina, o próprio narrador, que se reconhece como parte de uma elite envergonhada…. Às vezes, Lísias deixa desfilar pela narrativa o melhor e o pior de um Brasil que não pisa no freio nem olha pela janela. 

 

Uma dor perfeita

De Ricardo Lísias. Alfaguara, 148 páginas. R$ 54,90

 

 

 

Uma dor perfeita é um texto bem corajoso do ponto de vista pessoal, especialmente quando o narrador se permite sentimentos dos quais já sabe que vai se arrepender. Pode falar um pouco como foi trabalhar esses sentimentos no texto?

Há algo de importante e difícil de discutir falando do ponto de vista da linguagem: eu fiquei internado, no início sem conseguir me mover direito, sobretudo as pernas, muito próximo de outras pessoas, todas elas sem nenhum tipo de relativização correndo o risco concreto de morrer. Aconteceu com alguns dos meus vizinhos. Outros iam para o entubamento. Ouvi por exemplo um senhor telefonando para a neta de 6 anos e se despedindo antes de ser entubado. A enfermeira que o transportou começou a chorar ouvindo a ligação e acabou substituída por outra. À noite, sobretudo, algumas pessoas gritavam de medo. Uma tarde uma mulher deu entrada bem ao meu lado e começou logo a chorar, repetindo apenas uma frase: “quem está com o meu filho?”. Ela passou meia hora e depois silenciou. Não ouvi mais a voz dela. Diante disso, muitas coisas acabam sendo facilmente relativizadas e muitas outras perdem o sentido, ou ao menos a importância. É o que acontece com os sentimentos citados na pergunta.   

O que o livro diz sobre o Brasil contemporâneo?

Essa é mesmo uma pergunta boa e que me provoca, penso muito nisso. Eu acho que algo importante precisa ser dito de imediato: o governo federal atrasou a vacina, como a CPI demonstrou. A vacina teria evitado muitas mortes, como os especialistas indicam. Então, aquela situação toda que o livro traz é também resultado de um atraso proposital justamente para que o terror existisse. Acho isso central: aqueles idosos perto de mim já poderiam ter tido duas doses: eles não estariam lá! Assim, esse terror todo é o nosso país, é o que o governo federal produziu, sem que, aliás, instituição nenhuma tenha sido capaz de detê-lo!  No momento em que respondo essas perguntas, um jornalista e um indigenista estão desaparecidos, muito provavelmente em decorrência das políticas lenientes e cúmplices do governo com relação a garimpo, pesca ilegal, extração ilegal de madeira e por aí vai. O desaparecimento deles é uma imensa dor para muita gente, como o desaparecimento de Marielle e a morte de centenas de milhares de pessoas por covid-19, muitas resultado da política intencionalmente assassina do governo federal. O Brasil hoje me parece ser essa imensa dor, só que doentiamente há bastante gente gozando com ela, tendo prazer com ela.

“Como todos os outros, você acha que vai mudar o mundo, mas tudo o que consegue é usar o belo convênio e ao mesmo tempo se dizer solidário. Inventa aí um narrador, tempo e espaço, e quem sabe um palco para sua fraqueza”: qual a fraqueza do narrador? E do autor?

A prática literária levanta muitas questões para mim e de naturezas diferentes. O fato é que qualquer um que possa publicar um livro ou mesmo se manifestar de forma artística já ocupa um lugar de privilégio. Esse privilégio é conhecido e foi discutido de formas muito diferentes ao longo da história da arte. Foi também escamoteado e ocultado. Eu prefiro lidar com isso diretamente: assumir esse lugar e no próprio texto tratar dele. Há muitos exemplos possíveis para essa questão, posso dar um trivial: não ter morrido, para a gravidade da doença que sofri, é já um privilégio. Depois disso, ainda posso escrever sobre essa não-morte, portanto acho que o mais razoável é admitir esse privilégio. Mas a fraqueza está em muitos outros lugares: qual a força da literatura diante do governo fascista? A literatura discutiu inúmeras questões, muitas delas muito complexas (a presença do Mal por exemplo) ao longo da sua existência. E de fato onde tudo isso pode ter chegado? Eu não tenho respostas, mas sei que essas perguntas são importantes.  De resto não tenho dúvidas sobre a verdade que uma velha proposição da filosofia do século 20 colocou: se há um documento de cultura diante de nós, temos diante de nós um documento de barbárie. Eu ao menos admito.   

“Durante toda a minha internação, senti vergonha do excelente tratamento que recebi”: somos uma elite envergonhada? Ainda há vergonha na elite brasileira? O que a literatura pode fazer pela elite brasileira?

Vou começar pelo final: acho que a literatura bem pode expor a elite brasileira, colocar em pratos limpos o que essa gente significa. Para tanto, a literatura também terá que se expor, o que exige a descoberta de mecanismos específicos para isso. Eu sinto vergonha de muitas questões ligadas ao espaço que ocupo e não sei lidar bem com todas. Essa é uma delas. Tento por sua vez conviver com isso “traindo” a minha classe social, o que obviamente não consigo o tempo inteiro. Como eu disse com muita clareza no livro: quando precisei, fui ao melhor hospital a que eu tinha acesso. Posso minorar um pouco essa culpa (vencê-la por inteiro é impossível) tratando disso com clareza, expondo os mecanismos da minha própria classe e lidando com tensão com o meu próprio meio – o que acaba também me levando a ser visto muitas vezes com antipatia. Mas a questão do acesso não é a única vergonha que a minha classe deveria sentir: no geral, foram meus pares (eu não, essa culpa eu não carrego!) de classe social, sexo, cor da pele e formação que elegeram isso aí para presidente da república. Se os meus similares não tivessem votado nas eleições, centenas de milhares de pessoas estariam vivas. É uma culpa muito clara e sem qualquer relativização. Muitas outras culpas podem ser listadas: muita gente por exemplo fez questão de levar uma vida normal em meio a um governo fascista, aliás como ocorreu na Alemanha e na Itália durante os anos 1930 e 1940. Não sei como isso pode ser possível, mas foi. A única coisa é que acho que a culpa sequer é percebida, muito menos assumida. É um problema, pois quem foi capaz de votar no presidente depois de tudo o que ele afirmou durante a campanha é capaz de fazer qualquer coisa, e aqui qualquer coisa é qualquer coisa mesmo… 

Sobre o comentário do editor, que disse que o livro parecia uma arca de Noé contemporânea: alguém nessa arca merecia ser salvo?

Enfim, as pessoas tinham que ter tido acesso o mais rápido possível à vacina. Todas as pessoas, sem exceção. Então, todos os que cometeram crimes (por exemplo não dar acesso a essa vacina) devem ser julgadas. Acho que isso seria o mais razoável, mas infelizmente acabamos muito longe do razoável.

Para você, o que foi mais impactante dessa experiência de ter covid-19 em um momento em que ainda não havia vacinas?

Essa também é uma pergunta difícil, que me deixa pensativo. Eu acho que, de forma objetiva, dizendo em um plano muito particular, foi a dor da cintura para baixo que senti nos primeiros dias de internação. Foi de fato marcante. Mas eu acho que falando de forma geral, o ambiente todo era muito eloquente: o trabalho dos médicos, o stress dos enfermeiros, a presença da morte como um rato insistente, os gritos de noite, o avô fazendo uma ligação para a neta que poderia ser a última, meu filho de 6 anos do outro lado da tela compreendendo tudo, a incerteza de qualquer coisa. O ser humano diante do seu fim.