Quando a literatura encontra a zoologia

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Construído com viuvinhas, joões e marias, o pequeno universo enciclopédico de Maria Esther Maciel é um mundo muito delicado. Começou com uma pesquisa acadêmica sobre animais na literatura, iniciada há alguns anos. Dezenas de compêndios zoológicos de todas as épocas, incluindo os bestiários medievais, livros de história natural e manuais de zoologia fantástica passaram sob os olhos da pesquisadora. Depois de listar um sem número de animais e plantas de diferentes espécies, ela sentou para escrever a pequena enciclopédia de seres comuns. E, numa associação profundamente poética entre zoologia e literatura, construiu um breviário de sutilezas povoado por seres que não são nem monstruosos nem fantásticos, mas ganham certa magia na narrativa da escritora mineira e nas ilustrações de Julia Panadés.

Maria Esther dá vida, cara, comportamento e personalidade a esses seres. É um exercício de alteridade, segundo ela. Todos os seres vêm acompanhados de seus nomes científicos e quatro foram inventados, incluindo um guloso peixe-banana que surgiu na literatura graças a um conto de J.D. Salinger.

A autora começa com as Marias, que sempre vêm com um sobrenome a partir do qual o verbete se desenvolve. Da Maria-barulhenta à Maria-vai-com-as-outras, são muitas as personalidades antes de o leitor chegar aos Joões, que podem ser baiano, bobo, de barro, cachaça e até torresmo. “Os nomes Maria e João sempre foram usados para designar animais e plantas. Isso advém do imaginário popular e tem um caráter meio lúdico”, conta a autora. “Quando comecei a pesquisar esses nomes nos livros de zoologia e botânica, fiquei surpresa com a quantidade de marias e joões. Eu me diverti muito, pois vários nomes são engraçadíssimos. Adorei encontrar as justificativas para essas designações e descobrir como uma mesma espécie pode ter vários nomes populares, dependendo da região.”

As viúvas e viuvinhas formam um capítulo à parte e são muito diversas. Entre elas está a Viúva-humana. “Ela está triste, mas não é triste”, avisa a autora. E está de luto, um luto justo para um momento caótico. Maria Esther conta que começou a prestar mais atenção ao próprio jardim durante a pandemia, talvez em busca de um respiro em meio à asfixia causada pelo descontrole da situação sanitária. Por fim, entram os híbridos, talvez os mais divertidos da coleção, certamente os mais incomuns.

O mundo natural, a autora revela, foi e está sendo de grande valia durante a pandemia. “Ele me ajudou a me sentir viva, a ter um respiro, um alento nestes tempos de peste, mortes evitáveis, ódio, ignorância, arrogância, destruição”, conta. Abaixo, Maria Esther Maciel fala sobre literatura, zoologia e a confecção do livro.

pequena enciclopédia de seres comuns
De Maria Esther Maciel. Todavia, 110 páginas. R$ 56,90

Que metáforas podemos construir entre os seres enciclopédicos e o mundo habitado por nós?
As metáforas animais para designar o mundo humano são abundantes em nossa cultura. Mas no caso dos seres do meu livro, evitei transformá-los em meros símbolos, metáforas ou alegorias da vida humana. Se, em vários verbetes, eles apresentam alguns traços que poderiam ser caracterizados como humanos é porque para nós é impossível entrar na esfera subjetiva dessas alteridades radicais para descrever de forma precisa o que sentem e como veem a vida ao redor. Cabe a quem escreve exercitar a imaginação e a empatia para sondar as individualidades não humanas. Assim, para descrever meus seres, não apenas busquei informações em livros e sites científicos de zoologia e botânica, como também me pus a imaginar o que se passa na esfera íntima deles e as relações que mantêm com as demais espécies. Eu quis tratá-los como sujeitos que possuem, cada um à sua maneira, saberes próprios sobre o mundo que habitam.

O que plantas e insetos têm a nos dizer sobre o mundo?
Muita coisa. Sobretudo nos dizem que a natureza é imprescindível para a sobrevivência do planeta e da própria espécie humana. Sem plantas, árvores, insetos, mamíferos, aves, répteis, peixes e tudo o que vive, o mundo não existiria, e tampouco a humanidade. Por isso me preocupam tanto a destruição generalizada da natureza, os incêndios criminosos de florestas, a matança e a extinção de espécies animais e vegetais, a poluição dos rios, o avanço das usinas e mineradoras que, em nome do “desenvolvimento”, vêm transformando o mundo numa terra devastada. Epidemias como esta que estamos enfrentando têm a ver também com a maneira como os humanos têm lidado com a natureza e outros viventes que compartilham conosco a experiência do mundo.

Por que criar os seres híbridos? Eles fazem parte de uma poética particular?
A seção de seres híbridos da Pequena Enciclopédia foi organizada de acordo com os nomes comuns de animais e plantas já conhecidos e catalogados. Ou seja, o hibridismo incide, primeiramente, nos seus nomes populares. Os seres têm sempre características de outros, seja do reino animal ou do vegetal, o que justifica seus nomes híbridos. Incrível como a natureza também é cheia de viventes incomuns, que muita gente poderia achar fabulosos ou até absurdos. Apenas um ser híbrido do conjunto foi inventado: a “lagarta-dama-do-mato”, que, entretanto, não deixa de ser plausível. Claro que me inspirei nos manuais de zoologia fantástica, em especial o de Jorge Luis Borges, mas procurei me valer da “zoologia/botânica da realidade” e não a das mitologias e dos sonhos.

Sua relação com o mundo natural se estreitou durante a pandemia? Pode contar um pouco o porquê e como?
Bastante. Moro num apartamento com terraço, onde fica um pequeno jardim. Da minha sala de trabalho dá para ver alguns canteiros e vasos. Nos cômodos internos também há diversos vasos de plantas. Impressionante como, nesses dias de confinamento, passei a observar com mais cuidado os pequenos répteis e insetos, as peculiaridades dos seres vegetais (em especial as ervas de cheiro que dão flores), os pássaros que sempre chegam, pousando sobre galhos e sobre os móveis que ficam ao redor. Os bem-te-vis são os mais assíduos. Até morceguinhos já apareceram por aqui. Para não mencionar os pombos, as lagartixas e lagartas. O pé de manjericão, sempre florido, atrai muitas abelhas. Todo esse meu mundinho natural se tornou, para mim, um alento nestes dias de reclusão. Digo que, se a natureza já fazia parte de minha história, ela ganhou uma nova intensidade em meus dias de isolamento.

Você é fascinada por bichos e plantas? Por quê?
Sempre tive um grande fascínio pelos seres não humanos, desde a infância. Isso, graças ao enorme quintal de minha casa em Patos de Minas, onde nasci, e nas temporadas passadas na roça com meu pai e minha avó. Cheguei a ter um porco de estimação, muito afetuoso e inteligente, que andava o tempo todo atrás de mim. Minha vida, quando criança e adolescente, foi cercada de bichos de todo tipo: cães, gatos, coelhos, patos, galinhas, bois, porcos, grilos, joaninhas, papagaios, entre outros. Além disso, eu adorava ficar empoleirada nas árvores, percorrer os milharais, cultivar jardins. Mesmo depois de me mudar para Belo Horizonte, não deixei de ter plantas em casa, frequentar os parques, conviver com animais de estimação. Digo que aprendo muito com os seres não humanos. Eles me fazem encontrar a animalidade que me habita e me levam a reinventar minha própria dimensão humana.

Onde entra a poesia na composição desse livro?
Eu me ative muito à sensorialidade da escrita e busquei imprimir um ritmo às frases. No caso dos verbetes sobre aves, por exemplo, pesquisei sites com gravações de cantos de pássaros, de forma a tentar incorporar, textualmente, alguns sons. Creio que esse exercício de imaginar o que se passa na esfera íntima de vários desses seres também tem a ver com a poesia. Ela atravessa o conjunto em meio a vários outros registros, como a linguagem técnica, descrições, pequenas remissões a obras literárias. Ou seja, os meus escritos são híbridos, assim como vários dos seres neles presentes.

Como começa o teu processo criativo? Como você chega nos bichos? Por suas características? Pelos nomes?
Começa pelos nomes. Quando iniciei esse trabalho, listei inúmeros animais e plantas, de acordo com o critério onomástico. Depois, fui investigando sobre eles em livros de biologia, herbários, enciclopédias, volumes de história natural, sites especializados em aves e insetos, dicionários. Até mesmo trabalhos acadêmicos nas áreas de zoologia e botânica eu consultei, graças aos bancos de teses disponíveis nos sites das universidades. Assim que eu reunia um conjunto de verbetes, eu os enviava à ilustradora, Julia Panadés, que conseguiu imprimir nas imagens o mesmo enlace entre os registros científico e ficcional.

Para você, qual a mágica da interface entre a literatura e a biologia?
A interface entre literatura e biologia nos possibilita, ao mesmo tempo, entrar na esfera do que é vivo, do que existe enquanto força vital no mundo real, e transformar essa experiência em palavras também vivas. Se a biologia investiga a natureza pelas lentes da ciência, a literatura é capaz de transfigurar – pela ficção e os recursos da linguagem poética – os saberes biológicos em histórias, imagens, reflexões crítico-criativas e sensações.

Nahima Maciel

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