Ensaios de Carola Saavedra refletem sobre o lugar da literatura

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Cada um  dos temas de O mundo desdobrável – Ensaios para depois do fim poderia render um romance. E em cada um desses temas surge a pergunta “mas o que é literatura?”. O novo livro de Carola Saavedra pode ser descrito como uma reunião de ensaios sobre coisas do cotidiano. Plantas, família, origens, ancestralidade, pandemia, isolamento. Há um pouco de tudo nessas 210 páginas traçadas, como diz a autora, do ponto de vista de uma escritora, e não de uma pesquisadora.

Carola fala em pesquisa porque foi assim que começou a escrever ensaios, em 2012, para uma coluna no jornal literário Rascunho. Ali publicava breves textos sobre literatura e arte em uma época durante a qual também trabalhava na tese de doutorado sobre Dom Quixote e o início do romance moderno. “O que fiz com grande entusiasmo e que me apontou o desejo de desenvolver algo nesse sentido. Porém, a mim interessava escrever não a partir do meu ponto de vista como professora ou pesquisadora (nesse caso eu teria escrito um livro bem diferente), mas de escritora”, conta a autora, que hoje mora na Alemanha e é pesquisadora do Instituto Luso-Brasileiro da Universidade de Colônia.

O lugar do homem nessa era que se convencionou chamar de Antropoceno, as próprias heranças indígenas (Carola nasceu no Chile e foi criada no Brasil), a relação com a filha e a descoberta do aprendizado guiam a autora em parte do livro, que também tem reflexões sobre o cultivo de plantas durante a pandemia, a escrita feita por mulheres, o racismo e a psicanálise. “É um livro que tem como base um saber que vem da prática de quem escreve literatura, algo que sempre me interessou, essa ponte entre a teoria e a prática”, avisa Carola, que tem as obras ensaísticas de Ricardo Piglia, Juan José Saer, Virginia Woolf e Marguerite Duras como referências. “O livro nasceu, num sentido temático, quando eu estava escrevendo o Com armas sonolentas, que aborda na ficção as mesmas perguntas que eu apresento em O mundo desdobrável. Que perguntas são essas? Bom, a principal delas é quem somos nós enquanto país? Qual é a nossa história? Se já não somos, como gostávamos de imaginar, uma “democracia racial”, se já não somos “cordiais”, se já não somos tão alegres assim, quem somos então? Que violência é essa que nos engendra? E se enquanto povo carregamos em nós tanto a herança do opressor quanto a do oprimido, como conciliar algo tão inconciliável? E como lidar com isso na literatura?”, avisa.

Não há linearidade em O mundo desdobrável e o indicativo mais explícito disso é uma pequena ficção que perpassa os textos como se fosse um jogo literário. A estrutura, Carola compara , é semelhante à de uma espiral. “Como um caleidoscópio que o leitor vai girando, e a cada movimento surgem novas cores, novos formatos”, sugere. A não-linearidade, no entanto, não significa que não haja uma espinha dorsal. “Ela existe e é muito clara: a literatura e as questões que giram em torno dela”, garante a autora.

O mundo desdobrável – Ensaios para depois do fim

De Carola Saavedra. Relicário, 210 páginas. R$ 48

De certa forma, O mundo desdobrável é também uma tentativa de responder à pergunta “o que é literatura e para que serve”, que você mesma se faz no livro?

Sim, é a pergunta que permeia o livro. O que é literatura? O que pode a literatura num mundo em que, aparentemente, tudo parece mais importante que a literatura. Minha tese, de forma bem resumida, é que a literatura, assim como a arte, por ser uma “fala” do inconsciente, pode nos ajudar a pensar, a pensar a partir de outras premissas, de outra lógica, a pensar o que ainda não somos capazes de imaginar. E se este mundo em que vivemos está se tornando inabitável, e precisamos com urgência imaginar (e construir) outros mundos, a literatura se mostra uma das ferramentas mais potentes que temos.

Plantas, pandemia, a sua própria história, como todas esses temas se entrelaçam?

No livro eu quase sempre parto do cotidiano, do pessoal, faço isso porque eu queria me afastar da teoria, da linguagem acadêmica, e que chegasse ao leitor não pelo intelecto, mas pela experiência, que sempre me pareceu mais potente. Então quando eu falo da minha família e da silenciamento da herança indígena, apesar de óbvia (está na cara, como se diz), eu trago para o texto uma vivência que não é só minha, mas da maioria das pessoas no continente, que viveram sem nada saber de suas raízes africanas ou indígenas, e que agora começam a se perguntar sobre isso. É um movimento que vivemos em toda a América Latina. E isso nos obriga a mudar as nossas identificações, que até então era só com a cultura europeia. A mesma coisa quando falo das plantas, elas nos obrigam a repensar a nossa lógica, nossa forma de lidar com a alteridade, enfim, o livro inteiro é um constante movimento de lançar perguntar, questionar as nossas certezas.

Cada um desses temas poderia render um romance?

Sim, com certeza. Até porque são muitos temas. O livro está estruturado como um sonho, ou como uma conversa, em que tudo surge, desaparece, e retorna de outra maneira. Ao escolher essa estrutura quis trazer para a minha escrita essa outra lógica que eu abordo no livro, uma lógica não-linear, mais próxima dos saberes indígenas e afro-brasileiros. Os saberes que não se encaixam na lógica cartesiana que permeia o pensamento ocidental e que por isso, muitas vezes, são vistos por nós como algo menor ou irracional.

Qual a literatura possível em tempos como esse que estamos vivendo, com pandemia, crise climática e autoritarismos cada vez mais exacerbados?

Essa é uma pergunta muito importante, uma pergunta que me faço cada vez com mais frequência. Por um lado, me parece que já não podemos escrever como escrevíamos antes. Vivemos um momento muito complexo da nossa história que inclui o desvelamento de quem realmente somos como país, quais são as nossas bases: o genocídio e a escravização de negros e indígenas. Como disse anteriormente tivemos que nos desfazer dos nossos mitos de cordialidade e democracia racial, em termos intelectuais o país vive uma profunda ressignificação da sua história e identidade, mas por outro não há uma resposta pronta. Acho que nem há uma única resposta, os caminhos irão surgindo na medida em que formos caminhando.

O que te inspira a escrever neste momento?

No fundo o que sempre me inspirou, a angústia, a necessidade de colocar palavras onde há apenas caos e fúria.

Nahima Maciel

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